Palestra proferida em 3/8/2002, na 11th World Conference the International Society of Family Law, numa viagem de navio, de Copenhagen para Oslo.
Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família. Advogado em Direito de Família em Belo Horizonte/MG. Professor na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais/Brasil. Mestre em Direito Civil. Autor dos livros: “Concubinato e União Estável”; “Direito de Família: uma abordagem psicanalítica”; “A sexualidade vista pelos Tribunais”. Organizador das obras: “Direito de Família Contemporâneo”, “Direito de Família e o Novo Código Civil”, todos pela Editora Del Rey. E-mail: rcp@rodrigodacunha.adv.br
Sumário: 1. Introdução: a família pela ótica dos direitos humanos. 2. As novas concepções da família e a interdisciplinariedade: psicanálise e direito. 3. A família como estrutura: revisitando o artigo 16 da Declaração dos Direitos Humanos. 4. Dois grandes desafios: limites de intervenção do estado na vida privada e a subjetividade na objetividade jurídica. 5. Concluindo: toda demanda é uma demanda de amor. 6. Bibliografia.
1 INTRODUÇÃO: A FAMÍLIA PELA ÓTICA DOS DIREITOS HUMANOS
A evolução do conhecimento científico, os movimentos políticos e sociais do século XX e o fenômeno da globalização provocaram mudanças profundas na estrutura da família e nos ordenamentos jurídicos de todo o mundo. Certamente essas mudanças têm suas raízes históricas atreladas à Revolução Industrial, com a redivisão sexual do trabalho, e à Revolução Francesa, com os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.
Todas essas mudanças trouxeram novos ideais, provocaram um “declínio do patriarcalismo” e lançaram as bases de sustentação e compreensão dos Direitos Humanos, a partir da noção da dignidade da pessoa humana, hoje insculpida em quase todas as constituições democráticas. Em outras palavras, todos os países que pretendem ter uma Constituição democrática têm, necessariamente, que trazer em seus princípios a dignidade da pessoa humana, sustentáculo dos Direitos Humanos, afinal declarados e reconhecidos pela Assembléia da Organização das Nações Unidas - ONU, em 1948.
Os Direitos Humanos são indissociáveis da democracia e, conseqüentemente, da cidadania, palavra de ordem da contemporaneidade, que é hoje um imperativo categórico, à semelhança do imperativo categórico ético de Kant.
O Direito de Família é o mais humano de todos os ramos do Direito. Em razão disso, e também pelo sentido ideológico e histórico de exclusões, é que se torna imperativo pensar o Direito de Família na contemporaneidade com a ajuda e pelo ângulo dos Direitos Humanos, cujas bases e ingredientes estão, também, diretamente relacionados à noção de cidadania.
Cidadania significa não-exclusão. É, portanto, a inserção das várias representações sociais da família, da valorização do Sujeito de Direito em seu sentido mais profundo e ético. É a inclusão e a consideração das diferenças como imperativo da democracia.
O Direito, ideologicamente, vai incluindo ou excluindo pessoas do laço social. Não podemos permitir que a história das exclusões se repita, ou resista. Por exemplo, no Brasil, até 1888, os negros não eram Sujeitos de Direito; as mulheres, até 1932, não podiam votar e só foram consideradas juridicamente capazes em 1962; os filhos havidos fora do casamento, além de receberem o selo oficial de ilegítimos, não podiam ser reconhecidos na ordem jurídica; famílias sem a formalidade do casamento civil não eram legitimadas/reconhecidas pelo Estado.
A história do Direito de Família no Brasil, e em quase todos os ordenamentos jurídicos, é marcada por vários registros de exclusão. Não podemos dar as costas à História, sob pena de continuarmos perpetuando injustiças.
Essa reflexão significa, em sua essência, a invocação dos artigos 16 e 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos:
“Artigo 16:
I – os homens e mulheres de maioridade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução.
II – O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes.
III – A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem o direito à proteção da sociedade e do Estado.
Artigo 25:
I – (...)
II – A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.”
2 AS NOVAS CONCEPÇÕES DA FAMÍLIA E A INTERDISCIPLINARIEDADE: PSICANÁLISE E DIREITO
A família foi, é e continuará sendo o núcleo básico de qualquer sociedade. Sem família não é possível nenhum tipo de organização social ou jurídica. É na família que tudo principia. É a família que nos estrutura como sujeitos e encontramos algum amparo para o nosso desamparo estrutural. A tão propalada “crise” da família nada mais é que o resultado de um processo histórico de alteração das formas de sua constituição. Quando o artigo 25 da Declaração Universal de Direitos Humanos preceitua que “a família é o núcleo natural e fundamental da sociedade”, ele não está excluindo as diversas outras possibilidades de constituição de família, além daquela formada pelo matrimônio.
No final da segunda metade do século XX, quando foi feita a Declaração Universal dos Direitos do Homem, os ideais de liberdade já estavam bem consolidados, pelo menos para o mundo ocidental. Aliás, justamente esses foram ideais que autorizaram e trouxeram a necessidade de se fazer tal Declaração. No contexto desses ideais de liberdade, está inserida a liberdade das pessoas escolherem outras formas de constituição de família para além daquelas formadas tradicionalmente. A partir de então, os Estados Nacionais passaram a reconhecer várias formas de constituição de família. No Brasil, isto se deu oficialmente em 1988, com a nova Constituição da República: família constituída pelo casamento, pelo concubinato não-adulterino e as famílias monoparentais, ou seja, por qualquer dos pais que viva com seus descendentes. Antes dessa data, outros países já haviam reconhecido a “família plural”, assim como, até hoje há aqueles que só reconhecem a família constituída pelo casamento/matrimônio. Entretanto, diante desses ideais de liberdade trazidos pela concepção dos Direitos Humanos, pode-se afirmar que há uma tendência em todos os países do mundo de se “legitimar” e reconhecer as várias representações sociais da família.
Associada aos ideais de liberdade dos sujeitos, em todos os seus sentidos, está a necessidade de buscarmos um conceito de família que esteja acima de conceitos morais, muitas vezes estigmatizantes. Assim, devemos buscar um conceito de família que possa ser pensado e entendido em qualquer tempo ou espaço, já que família foi, é, e sempre será a célula básica da sociedade.
O Direito talvez não baste para ajudar-nos a encontrar a resposta. Devemos, então, buscar ajuda em outros campos do conhecimento, como na Antropologia e Psicanálise, para aprofundarmos a questão.
Na Antropologia, a partir de Claude Levi Strauss, com seu estruturalismo. Na Psicanálise, “inventada” por Freud e em sua forma mais evoluída por Jacques Lacan, poderemos trazer para o Direito uma noção mais profunda de família. Isto se torna particularmente importante em um Congresso Internacional como este, onde há operadores do Direito do mundo inteiro, o que significa dizer que há pessoas dos mais variados ordenamentos jurídicos, influências de todas as culturas e religiões, do Ocidente ao Oriente, de países ricos e pobres. Apesar de toda essa variedade e diversidade de cultura, religião e credos, valores morais, seria possível encontrar um elemento comum a todos nós, ou seja, seria possível estabelecer um CONCEITO UNIVERSAL DE FAMÍLIA? A Psicanálise lacaniana vem nos dizer que sim.
3 A FAMÍLIA COMO ESTRUTURA: REVISITANDO O ARTIGO 16 DA DECLARAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
A partir de Lacan e Levi Strauss, podemos dizer que FAMÍLIA É UMA ESTRUTURAÇÃO PSÍQUICA EM QUE CADA MEMBRO OCUPA UM LUGAR, UMA FUNÇÃO. Lugar de pai, lugar de mãe, lugar de filhos, sem, entretanto, estarem necessariamente ligados biologicamente. Tanto é assim, uma questão de “lugar”, que um indivíduo pode ocupar o lugar de pai ou mãe, sem que seja o pai ou a mãe biológicos. Exatamente por ser uma questão de lugar, de função exercida, que existe o milenar instituto da adoção. Da mesma forma, o pai ou a mãe biológicos podem ter dificuldade em ocuparem este lugar de pai ou de mãe, tão necessários e essenciais à nossa estruturação psíquica e formação como seres humanos e Sujeitos de Direitos.
É essa ESTRUTURAÇÃO FAMILIAR que existe antes, e acima do Direito, que nos interessa trazer para o campo jurídico. E é sobre ela que o Direito vem, através dos tempos, e em todos os ordenamentos jurídicos, regulando e legislando, sempre com o intuito de ajudar a mantê-la para que o indivíduo possa, inclusive, existir como cidadão (sem esta estruturação familiar, na qual há um lugar definido para cada membro, o indivíduo seria psicótico) e trabalhar na construção de si mesmo, ou seja, na estruturação do ser-sujeito e das relações interpessoais e sociais, que possibilitam a existência dos ordenamentos jurídicos.
Nossa velha e constante indagação persiste: o que é que garante a existência de uma família? Certamente não é o vínculo jurídico e nem mesmo laços biológicos de filiação são garantidores. Essas relações não são necessariamente naturais. Elas são da ordem da cultura, e não da natureza. Se assim fosse não seria possível o milenar instituto da adoção, por exemplo. Devemos, então, a partir da compreensão, e da constatação, de que é possível estabelecer um conceito universal para família, revisitar o inciso III do artigo 16 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, já que família não é natural, mas essencialmente cultural.
4 DOIS GRANDES DESAFIOS: LIMITES DE INTERVENÇÃO DO ESTADO NA VIDA PRIVADA E A SUBJETIVIDADE NA OBJETIVIDADE JURÍDICA
Ultrapassado esse grande desafio do atual Direito de Família, que é a definição e o conceito de família, deparamo-nos, ainda dentro desses ideais de liberdade e respeito à dignidade da pessoa humana, com duas grandes questões do Direito de Família pós- Declaração dos Direitos Humanos.
A primeira é saber qual o limite de intervenção do Estado na vida privada do sujeito-cidadão. No momento em que a tendência do Estado é afastar-se cada vez mais da vida privada do cidadão é de se perguntar se o Estado poderia impor que existe um culpado pelo fim do casamento, como ainda acontece em vários países, inclusive no Brasil. É de se indagar também se o Estado não estaria intervindo em excesso na vida privada do cidadão ao estabelecer textos normativos regulamentando o concubinato, e promovendo ações de investigação de paternidade como tem sido feito no Brasil e em vários outros países.
Segunda. Não se pode mais desconsiderar que na objetividade dos atos e fatos jurídicos permeia uma subjetividade. Por que os sujeitos pagam ou não pensão alimentícia, reconhecem ou não a paternidade, casam-se e separam-se e levam os restos do amor para o Judiciário? E o amor, quem diria, foi parar na Justiça!
Freud, ao revelar ao mundo a existência do INCONSCIENTE, fundou a Psicanálise que, além disso, trouxe-nos à consciência a compreensão da estrutura e funcionamento do nosso aparelho psíquico. Ele revelou, também, ao mundo que a sexualidade é algo muito mais profundo e que não se reduz à genitalidade. Sexualidade é uma dimensão presente na totalidade da existência humana. A energia libidinal é o que dá vida à vida. Faz-nos trabalhar, produzir, criar e descansar; amar e sofrer; ter alegria, prazer e angústia. É o DESEJO, que começa com a vida, termina com a morte e sustenta-nos por toda a vida. Começou a vida, instalou-se o desejo. Acabou o desejo, acabou a vida. É ele que mantém vivo o “arco da promessa”.
Assim, pode-se dizer que o “sujeito-de-direito” é também um “sujeito-de-desejo” e, portanto, um sujeito-desejante. É este sujeito-desejante que pratica atos jurídicos, faz e desfaz negócios.
Se somos sujeitos de desejo, é importante indagar o que é o desejo. A fisiologia do desejo é estar sempre desejando um algo mais. Desejo é falta. É assim nossa estrutura psíquica. Somos sujeitos da falta. Está sempre faltando algo para nos completar, embora, às vezes nos iludimos com o nosso ideal de completude. Somos mesmo de falta e algo em nós sempre faltará. Daí a definição de Lacan: “Desejo é desejo de desejo”.
Compreender o funcionamento da estrutura psíquica é compreender também a estrutura do litígio conjugal, em que o processo judicial se torna, muitas vezes, uma verdadeira história de degradação do outro. É a mistura e a confusão da subjetividade na objetividade, que fazem os sujeitos ali envolvidos estarem sempre com a sensação de que estão perdendo algo. Na verdade, naquele eterno e degradante litígio é uma tentativa de tamponarem, às vezes, inevitável perda da separação.
5 CONCLUINDO: TODA DEMANDA É UMA DEMANDA DE AMOR
O pensamento contemporâneo tomou um outro rumo a partir do discurso psicanalítico.As noções de inconsciente, desejo, e libido instalaram um outro discurso sobre a sexualidade, que não está necessariamente ligada à genitalidade, mas muito mais ao AFETO. Essa sexualidade está também vinculada a uma moral sexual dita civilizatória, segundo Freud. Por isso podemos dizer que todas as questões com as quais lidamos no Direito de Família, direta ou indiretamente, passam pelo crivo de um viés da moral sexual vigente. Por exemplo: quando se está investigando uma paternidade, mesmo com a possibilidade de prova via exames de DNA, discute-se a conduta da moral sexual da mãe; quando se está litigando em um processo de separação, na maioria das vezes o cerne é saber quem traiu, quem foi infiel; as discussões sobre anulação de casamento estão associadas à homossexualidade, frigidez, impotência etc; as destituições de pátrio poder, na maioria das vezes, dão-se em razão de um abuso sexual.
Em nome dessa moral sexual, dita civilizatória, é que muitos já foram excluídos do “laço social” e da legitimação e do reconhecimento do Estado, como os filhos havidos fora do casamento, famílias ilegítimas por não terem recebido o selo da oficialidade do casamento etc, etc. Até quando os ordenamentos jurídicos continuarão excluindo as formas de relações diferentes daquelas tradicionalmente instituídas? Em nome de qual moral os ordenamentos jurídicos se autorizam ainda a excluir, por exemplo, as relações homoafetivas? Não estaria na hora de reconhecer, em nome da dignidade da pessoa humana, base de sustentação dos Direitos Humanos, a liberdade de as pessoas estabelecerem suas relações e estarem, seja qual for sua forma de expressão do amor, incluídas no laço social?
Em síntese, e para terminar, as bases principiológicas dos Direitos Humanos pressupõem-se como sustentáculo da liberdade do sujeito. Entretanto, não é possível pensar em liberdade se as pessoas não puderem ser sujeitos da própria vida e do próprio destino e desejo. A verdadeira liberdade é aquela em que os Sujeitos-de-Direito não estejam assujeitados aos ordenamentos jurídicos excludentes das diferentes e diversas formas de constituição de famílias, ou nos ordenamentos jurídicos que sobrepõem a forma à essência e ainda não consideram o afeto como norteador e condutor da organização jurídica sobre a família. A verdadeira liberdade e ideal de Justiça estão naqueles ordenamentos jurídicos que asseguram um Direito de Família que compreenda a essência da vida: dar e receber amor.
6 BIBLIOGRAFIA
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