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segunda-feira, 13 de junho de 2011

DOUTRINA - FAMÍLIA, DIREITOS HUMANOS, PSICANÁLISE E INCLUSÃO SOCIAL

Rodrigo da Cunha Pereira


Palestra proferida em  3/8/2002, na 11th World Conference the International Society of Family Law, numa viagem de navio, de Copenhagen para Oslo.
 Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família. Advogado em Direito de Família em Belo Horizonte/MG. Professor na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais/Brasil. Mestre em Direito Civil. Autor dos livros: “Concubinato e União Estável”; “Direito de Família: uma abordagem psicanalítica”; “A sexualidade vista pelos Tribunais”. Organizador das obras: “Direito de Família Contemporâneo”, “Direito de Família e o Novo Código Civil”, todos pela Editora Del Rey. E-mail: rcp@rodrigodacunha.adv.br







Sumário: 1.  Introdução: a família pela ótica dos direitos humanos. 2. As novas concepções da família e a interdisciplinariedade: psicanálise e direito. 3. A família como estrutura: revisitando o artigo 16 da Declaração dos Direitos  Humanos. 4. Dois grandes desafios: limites de intervenção do estado na vida privada e a subjetividade na objetividade jurídica. 5. Concluindo: toda demanda é uma demanda de amor. 6. Bibliografia.




1 INTRODUÇÃO: A FAMÍLIA PELA ÓTICA DOS DIREITOS HUMANOS



A evolução do conhecimento científico, os movimentos políticos e sociais do século XX e o fenômeno da globalização provocaram mudanças profundas na estrutura da família e nos ordenamentos jurídicos de todo o mundo. Certamente essas mudanças têm suas raízes históricas atreladas à Revolução Industrial, com a redivisão sexual do trabalho, e à Revolução Francesa, com os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.

Todas essas mudanças trouxeram novos ideais, provocaram um “declínio do patriarcalismo” e lançaram as bases de sustentação e compreensão dos Direitos Humanos, a partir da noção da dignidade da pessoa humana, hoje insculpida em quase todas as constituições democráticas. Em outras palavras, todos os países que pretendem ter uma Constituição democrática têm, necessariamente, que trazer em seus princípios a dignidade da pessoa humana, sustentáculo dos Direitos Humanos, afinal declarados e reconhecidos pela Assembléia da Organização das Nações Unidas - ONU, em 1948.

Os Direitos Humanos são indissociáveis da democracia e, conseqüentemente, da  cidadania, palavra de ordem da contemporaneidade, que é hoje um imperativo categórico, à semelhança do imperativo categórico ético de Kant.

O Direito de Família é o mais humano de todos os ramos do Direito. Em razão disso, e também pelo sentido ideológico e histórico de exclusões, é que se torna imperativo pensar o Direito de Família na contemporaneidade com a ajuda e pelo ângulo dos Direitos Humanos, cujas bases e ingredientes estão, também, diretamente relacionados à noção de cidadania.

Cidadania significa não-exclusão. É, portanto, a inserção das várias representações sociais da família, da valorização do Sujeito de Direito em seu sentido mais profundo e ético. É a inclusão e a consideração das diferenças como imperativo da democracia.

O Direito, ideologicamente, vai incluindo ou excluindo pessoas do laço social. Não podemos permitir que a história das exclusões se repita, ou resista. Por exemplo, no Brasil, até 1888, os negros não eram Sujeitos de Direito; as mulheres, até 1932, não podiam votar e só foram consideradas juridicamente capazes em 1962; os filhos havidos fora do casamento, além de receberem o selo oficial de ilegítimos, não podiam ser reconhecidos na ordem jurídica; famílias sem a formalidade do casamento civil não eram legitimadas/reconhecidas pelo Estado.

A  história do Direito de Família no Brasil, e em quase todos os ordenamentos jurídicos, é marcada por vários registros de exclusão. Não podemos dar as costas à História, sob pena de continuarmos perpetuando injustiças.

Essa reflexão significa, em sua essência, a invocação dos artigos 16 e 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos:

“Artigo 16:

I – os homens e mulheres de maioridade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução.

II – O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes.

III – A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem o direito à proteção da sociedade e do Estado.

Artigo 25:
I – (...)
II – A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.”



2 AS NOVAS CONCEPÇÕES DA FAMÍLIA E A INTERDISCIPLINARIEDADE: PSICANÁLISE E DIREITO


A família foi, é e continuará sendo o núcleo básico de qualquer sociedade. Sem família não é possível nenhum tipo de organização social ou jurídica. É na família que tudo principia. É a família que nos estrutura como sujeitos e encontramos algum amparo para o nosso desamparo estrutural. A tão propalada “crise” da família nada mais é que o resultado de um processo histórico de alteração das formas de sua constituição. Quando o artigo 25 da Declaração Universal de Direitos Humanos preceitua que “a família é o núcleo natural e fundamental da sociedade”, ele não está excluindo as diversas outras possibilidades de constituição de família, além daquela formada pelo matrimônio.

No final da segunda metade do século XX, quando foi feita a Declaração Universal dos Direitos do Homem, os ideais de liberdade já estavam bem consolidados, pelo menos para  o mundo ocidental. Aliás, justamente esses foram ideais que autorizaram e trouxeram a necessidade de se fazer tal Declaração. No contexto desses ideais de liberdade, está inserida a liberdade das pessoas escolherem outras formas de constituição de família para além daquelas formadas tradicionalmente. A partir de então, os Estados Nacionais passaram a reconhecer várias formas de constituição de família. No Brasil, isto se deu oficialmente em 1988, com a nova Constituição da República: família constituída pelo casamento, pelo concubinato não-adulterino e as famílias monoparentais, ou seja, por qualquer dos pais que viva com seus descendentes. Antes dessa data, outros países já haviam reconhecido a “família plural”, assim como, até hoje há aqueles que só reconhecem a família constituída pelo casamento/matrimônio. Entretanto, diante desses ideais de liberdade trazidos pela concepção dos Direitos Humanos, pode-se afirmar que há uma tendência em todos os países do mundo de se “legitimar” e reconhecer as várias representações sociais da família.

Associada aos ideais de liberdade dos sujeitos, em todos os seus sentidos, está a necessidade de buscarmos um conceito de família que esteja acima de conceitos morais, muitas vezes estigmatizantes. Assim, devemos buscar um conceito de família que possa ser pensado e entendido em qualquer tempo ou espaço, já que família foi, é, e sempre será a célula básica da sociedade.

O Direito talvez não baste para ajudar-nos a encontrar a resposta. Devemos, então, buscar ajuda em outros campos do conhecimento, como na Antropologia e Psicanálise, para aprofundarmos a questão.

Na Antropologia, a partir de Claude Levi Strauss, com seu estruturalismo. Na Psicanálise, “inventada” por Freud e em sua forma mais evoluída por Jacques Lacan, poderemos trazer para o Direito uma noção mais profunda de família. Isto se torna particularmente importante em um Congresso Internacional como este, onde há operadores do Direito do mundo inteiro, o que significa dizer que há pessoas dos mais variados ordenamentos jurídicos, influências de todas as culturas e religiões, do Ocidente ao Oriente, de países ricos e pobres. Apesar de toda essa variedade e diversidade de cultura, religião e credos, valores morais, seria possível encontrar um elemento comum a todos nós, ou seja, seria possível estabelecer um CONCEITO UNIVERSAL DE FAMÍLIA? A Psicanálise lacaniana vem  nos dizer que sim.


3 A FAMÍLIA COMO ESTRUTURA: REVISITANDO O ARTIGO 16 DA DECLARAÇÃO DOS DIREITOS  HUMANOS


A partir de Lacan e Levi Strauss, podemos dizer que FAMÍLIA É UMA ESTRUTURAÇÃO PSÍQUICA EM QUE CADA MEMBRO OCUPA UM LUGAR, UMA FUNÇÃO. Lugar de pai, lugar de mãe, lugar de filhos, sem, entretanto, estarem necessariamente ligados biologicamente. Tanto é assim, uma questão de “lugar”, que um indivíduo pode ocupar o lugar de pai ou mãe, sem que seja o pai ou a mãe biológicos. Exatamente por ser uma questão de lugar, de função exercida, que existe o milenar instituto da adoção. Da mesma forma, o pai ou a mãe biológicos podem ter dificuldade em ocuparem este lugar de pai ou de mãe, tão necessários e essenciais à nossa estruturação psíquica e formação como seres humanos e Sujeitos de Direitos.

É essa ESTRUTURAÇÃO FAMILIAR que existe antes, e acima do Direito, que nos interessa trazer para o campo jurídico. E é sobre ela que o Direito vem, através dos tempos, e em todos os ordenamentos jurídicos, regulando e legislando, sempre com o intuito de ajudar a mantê-la para que o indivíduo possa, inclusive, existir como cidadão (sem esta estruturação familiar, na qual há um lugar definido para cada membro, o indivíduo seria psicótico) e trabalhar na construção de si mesmo, ou seja,  na estruturação do ser-sujeito e das relações interpessoais e sociais, que possibilitam a existência dos ordenamentos jurídicos.

Nossa velha e constante indagação persiste: o que é que garante a existência de uma família? Certamente não é o vínculo jurídico e nem mesmo laços biológicos de filiação são garantidores. Essas relações não são necessariamente naturais. Elas são  da ordem da cultura, e não da natureza. Se assim fosse não seria possível o milenar instituto da adoção, por exemplo. Devemos, então, a partir da compreensão, e da constatação, de que é possível estabelecer um conceito universal para família, revisitar o inciso III do artigo 16 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, já que família não é natural, mas essencialmente cultural.


4 DOIS GRANDES DESAFIOS: LIMITES DE INTERVENÇÃO DO ESTADO NA VIDA PRIVADA E A SUBJETIVIDADE NA OBJETIVIDADE JURÍDICA


Ultrapassado esse grande desafio do atual Direito de Família, que é a definição e o conceito de família, deparamo-nos, ainda dentro desses ideais de liberdade e respeito à dignidade da pessoa humana, com duas grandes questões do Direito de Família pós- Declaração dos Direitos Humanos.

A primeira é saber qual o  limite de intervenção do Estado na vida privada do sujeito-cidadão. No momento em que a tendência do Estado é afastar-se cada vez mais da vida privada do cidadão é de se perguntar se o Estado poderia impor que existe um culpado pelo fim do casamento, como ainda acontece em vários países, inclusive no Brasil. É de se indagar também se o Estado não estaria intervindo em excesso na vida privada do cidadão ao estabelecer textos normativos regulamentando o concubinato, e promovendo ações de investigação de paternidade como tem sido feito no Brasil e em vários outros países.

Segunda. Não se pode mais desconsiderar que na objetividade dos atos e fatos jurídicos permeia uma subjetividade. Por que os sujeitos pagam ou não pensão alimentícia, reconhecem ou não a paternidade, casam-se e separam-se e levam os restos do amor para o Judiciário? E o amor, quem diria, foi parar na Justiça!

Freud, ao revelar ao mundo a existência do INCONSCIENTE, fundou a Psicanálise que, além disso, trouxe-nos à consciência a compreensão da estrutura e funcionamento do nosso aparelho psíquico. Ele revelou, também, ao mundo que a sexualidade é algo muito mais profundo e que não se reduz à genitalidade. Sexualidade é uma dimensão presente na totalidade da existência humana. A energia libidinal é o que dá vida à vida. Faz-nos trabalhar, produzir, criar e descansar; amar e sofrer; ter alegria, prazer e angústia. É o DESEJO, que começa com a vida, termina com a morte e sustenta-nos por toda a vida. Começou a vida, instalou-se o desejo. Acabou o desejo, acabou a vida. É ele que mantém vivo o “arco da promessa”.

Assim, pode-se dizer que o “sujeito-de-direito” é também um “sujeito-de-desejo” e, portanto, um sujeito-desejante. É este sujeito-desejante que pratica atos jurídicos, faz e desfaz negócios.

Se somos sujeitos de desejo, é importante indagar o que é o desejo. A fisiologia do desejo é estar sempre desejando um algo mais. Desejo é falta. É assim nossa estrutura psíquica. Somos sujeitos da falta. Está sempre faltando algo para nos completar, embora, às vezes nos iludimos com o nosso ideal de completude. Somos mesmo de falta e algo em nós sempre faltará. Daí a definição de Lacan: “Desejo é desejo de desejo”.

Compreender o funcionamento da estrutura psíquica é compreender também a estrutura do litígio conjugal, em que o processo judicial se torna, muitas vezes, uma verdadeira história de degradação do outro. É a mistura e a confusão da subjetividade na objetividade, que fazem os sujeitos ali envolvidos estarem sempre com a sensação de que estão perdendo algo. Na verdade, naquele eterno e degradante litígio é uma tentativa de tamponarem, às vezes, inevitável perda da separação.


5 CONCLUINDO: TODA DEMANDA É UMA DEMANDA DE AMOR


O pensamento contemporâneo tomou um outro rumo a partir do discurso psicanalítico.As noções de inconsciente, desejo, e libido instalaram um outro discurso sobre a sexualidade, que não está necessariamente ligada à genitalidade, mas muito mais ao AFETO. Essa sexualidade está também vinculada a uma moral sexual dita civilizatória, segundo Freud. Por isso podemos dizer que todas as questões com as quais lidamos no Direito de Família, direta ou indiretamente, passam pelo crivo de  um viés da moral sexual vigente. Por exemplo: quando se está investigando uma paternidade, mesmo com a possibilidade de prova via exames de DNA, discute-se a conduta da moral sexual da mãe; quando se está litigando em um processo de separação, na maioria das vezes o cerne é saber quem traiu, quem foi infiel; as discussões sobre anulação de casamento estão associadas à homossexualidade, frigidez, impotência etc; as destituições de pátrio poder, na maioria das vezes, dão-se em razão de um abuso sexual.

Em nome dessa moral sexual, dita civilizatória, é que muitos já foram excluídos do “laço social” e da legitimação e do reconhecimento do Estado, como os filhos havidos fora do casamento, famílias ilegítimas por não terem recebido o selo da oficialidade do casamento etc, etc. Até quando os ordenamentos jurídicos continuarão excluindo as formas de relações diferentes daquelas tradicionalmente instituídas? Em nome de qual moral os ordenamentos jurídicos se autorizam ainda a excluir, por exemplo, as relações homoafetivas? Não estaria na hora de reconhecer, em nome da dignidade da pessoa humana, base de sustentação dos Direitos Humanos, a liberdade de as pessoas estabelecerem suas relações e estarem, seja qual for sua forma de expressão do amor, incluídas no laço social?

Em síntese, e para terminar, as bases principiológicas dos Direitos Humanos pressupõem-se como sustentáculo da liberdade do sujeito. Entretanto, não é possível pensar em liberdade se as pessoas não puderem ser sujeitos da própria vida e do próprio destino e desejo. A verdadeira liberdade é aquela em que os Sujeitos-de-Direito não estejam assujeitados aos ordenamentos jurídicos excludentes das diferentes e diversas formas de constituição de famílias, ou nos ordenamentos jurídicos que sobrepõem a forma à essência e ainda não consideram o afeto como norteador e condutor da organização jurídica sobre a família. A verdadeira liberdade e ideal de Justiça estão  naqueles ordenamentos jurídicos que asseguram um Direito de Família que compreenda a essência da vida: dar e receber amor.



6 BIBLIOGRAFIA



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LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 20. Trad. M.D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

_______. Complexos familiares. Trad. Marco Antônio Coutinho Jorge e Potiguara Mendes da Silveira Júnior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.

LEGENDRE, Pierre. L'amour du Censuer - Essai sur l'ordre dogmatique. Paris: Édition du Seiul, 1974.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A sexualidade vista pelos tribunais. – 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.

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PETRAZYCKI, Leon. Law and Morality. Tentieth Century Legal Philosophy series, v. VII, Cambridge (Mass), 1955.

STRAUSS, Claude Levi. Estruturas elementares do parentesco. Trad. Mariano Ferreira. Petrópolis: Vozes, 1982.

VILLELA, João Baptista. “A desbiologização da paternidade”. Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Belo Horizonte, ano XXVII, n. 21, 1979.

______. As novas relações da família. In: Anais da XV Conferência Nacional da OAB em Foz do Iguaçu. São Paulo: JBA Comunicações, 1995.

VINDELOV, Vibeke. Family Lawin Denmark. In Family, Law and social policy - OÑATI - Valério Pocar and Paola Ronfani, 1991.

DOUTRINA - A CRIANÇA NO NOVO DIREITO DE FAMÍLIA

Maria Regina Fay de Azambuja – Procuradora de Justiça do Ministério Público do RGS, Especialista em Violência Doméstica pela USP, Mestre em Direito pela UNISINOS, Sócia do IARGS, IBDFAM e SORBI

(escrito em maio.2005)

“O homem, desde antes de seu nascimento e para além da morte, está preso na cadeia simbólica que fundou a linhagem, antes que nela seja bordada a história”.

J. Lacan



INTRODUÇÃO

Com a vigência da Constituição Federal de 1988, marco referencial da instituição do princípio da dignidade humana, novo cenário se descortina no país, com reflexos que atingem diversas áreas da vida do homem contemporâneo, tanto na esfera pública como privada. A proteção aos direitos humanos, fundamento do Estado Democrático de Direito, passa, doravante, a embasar a organização da nação brasileira.

De outro lado, o art. 227 da Constituição Federal de 1988 elucida o compromisso do Brasil com a Doutrina da Proteção Integral, assegurando às crianças e aos adolescentes a condição de sujeitos de direitos, de pessoas em desenvolvimento e de prioridade absoluta. Inverteu-se, desde então, o foco da prioridade. No sistema jurídico anterior, privilegiava-se o interesse do adulto. Com a Nova Carta, o interesse prioritário passa a ser o da criança.

A mudança de paradigmas tem exigido a substituição de práticas que caracterizaram a Doutrina da Situação Irregular, representada pelo segundo Código de Menores, por ações que garantam o melhor interesse da criança, segundo as disposições trazidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Os reflexos da norma abrangem não só as situações que são levadas às Varas da Infância e Juventude, casos em que a situação de risco a que a criança está exposta é flagrante, mas, igualmente, os feitos que tramitam nas Varas de Família, quando, por vezes, os maus-tratos e a violência vêm envoltos em artimanhas construídas pelo mundo adulto, notadamente pelo pai e pela mãe do infante, não raro com a conivência dos advogados contratados para defender os genitores litigantes.

O presente artigo busca enfocar a Doutrina da Proteção Integral, dentro do contexto do novo Direito de Família, com ênfase no exame das questões que envolvem a garantia do direito à convivência familiar, na tentativa de, quiçá, alertar os profissionais que atuam na área para a imensa responsabilidade que sobre eles recai quando estão diante de um caso em que haja criança envolvida.

I. A CRIANÇA NO NOVO DIREITO DE FAMÍLIA

A família de hoje, pode-se afirmar, não apresenta a mesma configuração da família de séculos anteriores. A mudança de cultura, de hábitos e as exigências da vida contemporânea provocaram alterações, não só no dia a dia das famílias, como também na sua própria concepção legal.

Na Roma Antiga, a palavra família significava “o conjunto de empregados de um senhor”; “o pertencimento a uma família era determinado mais pela autoridade a que a pessoa estava submetida do que pelos laços de sangue”.  Já no decorrer dos séculos XVI e XVII, “os dicionários franceses e ingleses traziam definições de família ora pontuadas na questão da co-habitação, ora na do parentesco e da consangüinidade”.  Na pós-modernidade, a família, “mais do que uma unidade emocional, constitui uma unidade sociológica, incumbindo-se de transformar organismos biológicos em seres sociais”, cabendo aos pais a responsabilidade pela transmissão de padrões culturais, valores ideológicos e morais.  Em outras palavras, a família pode ser vista como “um caleidoscópio de relações que muda no tempo de sua constituição e consolidação em cada geração, que se transforma com a evolução da cultura, de geração para geração”.

A Constituição Federal de 1988 define a entidade familiar como a constituída pelo casamento civil ou religioso com efeitos civis (art. 226, §§ 1º e 2º); a constituída pela união estável entre o homem e a mulher, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento (art. 226, § 3º), bem como a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (art. 226, § 4º).

A família, sob o ponto de vista jurídico, é constituída pelo conjunto de pessoas ligadas pelo casamento, pela união estável, pelo parentesco ou, ainda, pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.  Com o passar do tempo, “a imagem da família-instituição dá lugar à família funcionalizada à formação e ao desenvolvimento da personalidade de seus componentes, nuclear, democrática, protegida, na medida em que cumpra com o seu papel educacional, e na qual o vínculo biológico e a unicidade patrimonial são aspectos secundários”.  O ente familiar “é um corpo que se reconhece no tempo; uma agregação histórica e cultural como espaço de poder, de laços e de liberdade” ; como fato e fenômeno, “antecede, sucede e transcende o jurídico”.  A família pode ser entendida como “uma estruturação psíquica, onde cada um dos seus membros ocupa um lugar, uma função”.  De qualquer forma, o direito à convivência familiar significa também “o direito de ser amado e de, conseqüentemente, aprender a amar o outro”.

Indiscutivelmente, o Direito de Família

é o mais humano de todos os ramos do direito; em razão disso, e também pelo sentido ideológico e histórico das exclusões, é que se torna imperativo pensar o Direito de Família na contemporaneidade com a ajuda e pelo ângulo dos Direitos Humanos, cujas bases e ingredientes estão, também, diretamente relacionados à noção de cidadania.

No atual Direito de Família, “é preciso verificar novos sujeitos em face de alguns direitos constitucionais” , sendo que, “nessa nova perspectiva, são retomadas categorias fundantes para compreender as transformações que se passam e que sugerem revelar transição” (...), “não há mais a família no sentido clássico”, mas, na essência, o fenômeno espelhando o que têm de central na família: “os nós desatando-se, mas não o ninho”.

Pela sistemática adotada pelo Código Civil de 2002, pode-se afirmar que o Direito de Família vem disciplinado através de um texto caracterizado por uma maior liquidez, passando a contemplar: a) o direito pessoal, onde se incluem o casamento e as relações de parentesco; b) o direito patrimonial, que se ocupa do regime de bens entre os cônjuges, do usufruto, da administração dos bens dos filhos menores, dos alimentos e do bem de família; e, em título distinto, c) a união estável; a tutela e a curatela, através das disposições contidas nos artigos 1.511 a 1.783.

Partindo dos ditames constitucionais da dignidade humana, bem como da Doutrina da Proteção Integral à criança e ao adolescente, o Direito de Família, suas práticas e seus novos desafios, como as inseminações e fertilizações artificiais, os úteros de aluguel, as cirurgias de mudança de sexo, os relacionamentos afetivos entre pessoas do mesmo sexo e a clonagem de células precisam ser constantemente repensados, lembrando que “o reconhecimento da dignidade do ser humano é um dos princípios mais antigos e, talvez mesmo, latente da civilização, desde seus primórdios”.  Na expressão de Sergio Resende de Barros,

A dignidade humana é versão axiológica da natureza humana. Mas, ambas, igualmente dóceis à malversação entre si, se não forem fixadas à substância histórica que as comunica: a preservação da humanidade em tudo o que ela é comum e essencial, vale dizer, a preservação da comunidade humana fundamental.

Alicerçado no contexto constitucional vigente, no Estatuto da Criança e do Adolescente e nos princípios da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, é que o novo Direito de Família há de construir seus caminhos, em especial, quando, nos conflitos que examinar, houver criança envolvida.

Entre outras diretrizes, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança  afirma: o direito de a criança conhecer e conviver com seus pais, a não ser quando incompatível com seu melhor interesse; o direito de manter contato com ambos os pais, caso seja separada de um ou de ambos; as obrigações do Estado, nos casos em que tais separações resultarem de ação do Poder Judiciário, assim como a obrigação do estado de promover proteção especial às crianças desprovidas do seu ambiente familiar, assegurando ambiente familiar alternativo apropriado ou colocação em instituição, considerando sempre o ambiente cultural da criança.

Ao debruçar-se sobre a Convenção, menciona Miguel Cillero Bruñol:

A convenção representa uma oportunidade, certamente privilegiada, para desenvolver um novo esquema de compreensão da relação da criança com o Estado e com as políticas sociais, e um desafio permanente para se conseguir uma verdadeira inserção das crianças e seus interesses nas estruturas e procedimentos dos assuntos públicos”.

Não há como deixar de ressaltar, dentro do contexto histórico, a postura de vanguarda do Brasil, ao assumir, em 1988, o compromisso com a Doutrina da Proteção Integral, através do art. 227 da Constituição Federal. Portanto, mesmo antes da aprovação do texto que deu origem à Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, a nação brasileira já se comprometera com a defesa dos direitos da infância. Doravante, entre os direitos fundamentais assegurados à criança, encontramos, ao lado do direito à vida, à saúde, à educação, à liberdade, ao respeito, à dignidade, o direito à convivência familiar.

Ao referir-se aos direitos humanos fundamentais, Sérgio Resende de Barros assinala:

Quando se pensa em direitos humanos fundamentais o primeiro que vem à mente é o direito à vida. Mas, já neste instante primário se evidencia o quão fundamental é a família, pois no mundo dos seres humanos -e, portanto, dos direitos humanos, -não se pode pensar a vida sem pensar a família. Uma implica a outra, necessariamente, a partir do nascimento e ao longo do desenvolvimento do ser humano. Daí que –também necessariamente – o direito à vida implica o direito à família, fundando-o primordialmente: como o primeiro na ordem jurídica da família, o mais fundamental dos direitos de família.

A família, até pouco tempo, era vista como um espaço inviolável. Os fatos que aconteciam no ambiente privado não interessavam à sociedade e ao Estado, reservando-se a intervenção estatal aos casos muito graves, que contrariavam práticas culturais aceitas até então. À criança, muito pouco restava, porquanto, somente a partir de 1988, adquiriu, frente ao ordenamento jurídico, a condição de sujeito de direitos.

O avanço ocorrido em várias áreas do conhecimento, em especial, nas últimas décadas, tem apontado para a importância dos cuidados que devem ser dispensados à criança, visando o seu desenvolvimento saudável, não só na área física, como social e psíquica. Sabe-se, na atualidade, que as agressões ambientais, “entendidas como desde as provocadas por um vírus sobre o embrião até a violência de um pai sobre o bebê, a morte prematura de um dos pais ou o abuso sexual – podem danificar, em variados graus de intensidade, tanto o aparelho psicológico como, conseqüentemente, o genético, dada à plasticidade do sistema nervoso central”.

A Constituição Federal de 1988, ao atribuir à família, à sociedade e ao poder público a responsabilidade de assegurar à criança a gama de direitos fundamentais que arrola em seu artigo 227, acerta o passo com a história, possibilitando, em nosso país, o desenvolvimento de políticas e programas voltados à prevenção primária.

Nos dias atuais, muitas demandas que são levadas ao Poder Judiciário decorrem da carência de investimentos nas políticas sociais básicas de atendimento à criança e à família, em que pesem as disposições constitucionais e infraconstitucionais existentes. Passa o Judiciário, por vezes, a ser o depositário das crises e dos conflitos pessoais e interpessoais, bem como da falência do próprio Estado, sobrecarregando as Varas de Família e da Infância e Juventude com problemas que fogem às suas alçadas de atuação e de resolução, ao menos, em curto prazo.

Sabe-se que a violência intrafamiliar e os maus-tratos praticados contra a criança “atingem milhares de crianças e adolescentes e não costumam obedecer a algum nível sócio-cultural específico, como se pode pensar”.  Ademais, na história particular das famílias, observa-se que as gerações repetem padrões de relacionamento, muitas vezes de forma inconsciente, necessitando a intervenção de um terceiro, que possa compreender e interromper o padrão abusivo estabelecido.

É provável que, em muitos casos de separação e divórcio, bem como em disputas de guarda e regulamentação de visitas que tramitam nas Varas de Família, esteja-se diante de situações que encobrem violência contra as crianças e os adolescentes pertencentes a essas famílias, sem que as partes tenham consciência da gravidade de seu agir, ou, mesmo conscientes, deixam de revelá-los aos profissionais, fazendo com que nada conste nos autos do processo, impedindo, em conseqüência, a adoção de medidas de proteção àqueles que ainda não atingiram os dezoito anos de idade. Nesses casos, a correta avaliação da situação da família, em especial, da criança, inclusive quanto ao seu desenvolvimento físico, social e psíquico ; a redobrada atenção aos fatos que se sucedem no tramitar do feito, bem como a compreensão das relações familiares, constituem-se em instrumentos que não podem ser desprezados pelo sistema de Justiça. Não é mais possível que os profissionais envolvidos em disputas de família examinem as questões postas, sob o âmbito restrito da pretensão dos adultos, sem averiguar, com atenção, a real situação das crianças pertencentes a essas famílias.

Enquanto nas Varas da Infância e Juventude já se criou uma cultura de proteção à infância, nas Varas de Família, com certa freqüência, ainda se trabalha de forma não condizente com a Doutrina da Proteção Integral. Limita-se, como já se disse, a resolver os conflitos vividos pelos adultos, deixando de investigar, ainda que de forma sumária, a situação das crianças envolvidas. Fruto da ordem constitucional em vigor, “o que está em questão, no caso da guarda dos filhos menores, é qual dos cônjuges tem melhores condições de exercê-la - e não quem é o culpado pela separação: se um ou ambos”.

Aplicar o princípio do melhor interesse da criança, nas disputas de guarda, não se constitui tarefa fácil. Como saber o que é melhor para a criança, quando ambos os pais pleiteiam, em Juízo, a guarda do filho? Não estariam, aparentemente, ambas as partes buscando o melhor para a criança?

Confundir o interesse do adulto com o da criança é fato corriqueiro nos conflitos que são levados às Varas de Família, sendo os filhos “colocados como epicentro da disputa paterna, como se fossem meros objetos numa relação de forçada convivência em que se lhes renega a posição de sujeito de direitos”.  A criança, via de regra, tem poucas oportunidades de ser ouvida, em que pese o disposto no artigo 28, § 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, ao passo que os adultos, através de seus advogados, são responsáveis pelos pleitos que vêm expressos ao longo da demanda judicial, valendo referir que são freqüentes  “as decisões que priorizam os interesses e condições dos pais” , em detrimento da melhor alternativa para a criança.

Como saber quem tem melhores condições para o desempenho da guarda? Como regulamentar adequadamente as visitas do filho ao (à) pai/mãe? Somente através de uma criteriosa avaliação, com o auxílio de uma equipe interdisciplinar, que permita conhecer a realidade da família e o tipo de vínculo estabelecido entre a criança e cada um dos genitores, poderá, ao lado da escuta da criança, fornecer elementos mais seguros à decisão judicial que efetivamente venha contemplar o melhor interesse do infante.

Desde muito cedo, os bebês devem merecer cuidados especiais por parte dos pais e cuidadores, como alerta a autora de recente publicação:

...bebês que recebem cuidado altamente irregular são mais inclinados a tornarem-se muito dependentes e ansiosos na vida adulta; crianças que recebem cuidado persistentemente irresponsivo são mais propensas do que outras a calarem-se emocionalmente e a agirem de forma a manter os outros a uma certa distância; por outro lado, crianças que recebem cuidado consistente e responsivo nos primeiros anos de vida tendem a desenvolver grandes habilidades sociais mais tarde.

Como se vê, os fatos a serem avaliados, nem sempre são de fácil percepção e constatação: exigem uma visão interdisciplinar e uma capacitação específica dos profissionais. Advogados, técnicos, promotores e procuradores de Justiça, assim como os Magistrados, devem estar cientes das múltiplas facetas que compõem as relações familiares, especialmente porque, “muitas vezes, o rompimento da vida em comum altera as habilidades que as pessoas têm para cuidar dos filhos” , gerando um cenário com novas configurações nas relações entre pais e filhos. De nada adianta, nesses casos, trazer aos autos exclusivamente provas do relacionamento da época em que a família não experimentava o conflito da separação. Há que se resgatar a história familiar, a fim de que a decisão judicial possa alcançar a efetividade que todos almejam. Caso contrário, corre-se o risco de a decisão “exacerbar ainda mais o conflito entre os pais, com resultados incertos, mantendo climas tensos e hostis, conduzindo a uma insatisfação geral” , com prejuízos ao desenvolvimento da criança. Nesse sentido, vale lembrar que “os conflitos sociais e os de família são os mais sensíveis; não se resolvem com um decreto judicial, que somente pode advir do último escolho”; “(...) os conflitos de família podem compor-se tecnicamente pela sentença, mas com ela não se solucionam. Pelo contrário, com freqüência, o comando judicial, muitas vezes, agrava um problema sem resolvê-lo”.

O ciclo da vida humana vem marcado por crises de transição que também são experimentadas pelo grupo familiar, constituindo-se “pontos de maior vulnerabilidade”, momentos em que podem aparecer os sintomas, inclusive sob a forma de litígios, valendo lembrar que uma demanda judicial pode, muitas vezes, “contribuir para cronificar um conflito ou engessar o processo evolutivo de uma família”.  Dentro desse contexto, torna-se essencial uma ampla compreensão das relações humanas, por parte dos profissionais, a fim de que efetivamente possam “auxiliar a desfazer estes nós”.

Pode-se afirmar, na linguagem jurídica, “que o processo judicial é um ritual, sob o comando do juiz, que ocupa a importante função de representante da lei e simbolicamente também de ‘um pai’, que vem, principalmente, fazer um corte, pôr fim, (sentença) a uma demanda, amigável ou litigiosa, instalando uma nova fase da vida das pessoas”.

Importante distinguir, dentro desse cenário, os aspectos sócio-culturais que caracterizam a família que chega ao sistema de Justiça, valendo referir que, em função do contexto social, “a criança ocupa diferentes posições na família: na classe média, em geral, é o centro de atenção e de investimento familiar, enquanto, nas camadas populares, filhos e pais estão lado a lado na luta pela sobrevivência”.

Não é mais possível desvincular, diante da sistemática atual, o Direito de Família do Direito da Criança e do Adolescente. Ambos formam uma teia, um emaranhado de conexões que não podem ser desmembrados na atuação dos profissionais do Direito, em especial, nos casos que são submetidos à apreciação do Juízo de Família , valendo lembrar que a positivação dos direitos peculiares da criança e do adolescente “caracteriza benfazeja revolução em nosso ordenamento jurídico”, modificando “a estrutura sistemática e principiológica do anterior e clássico direito de família”.

Urge que os profissionais, além da habilidade legal para o exercício da profissão, sejam portadores de competência técnica específica para a função a ser desempenhada, eis que, na atualidade, “o tradicional papel do advogado litigante cede lugar ao do advogado negociador, que, juntamente com o juiz conciliador, aponta ao interessado o modo mais conveniente para obter a solução do conflito que lhe aflige” , respeitando, sempre, em qualquer hipótese, o direito da criança. Nenhum outro campo do Direito exige do jurista, do legislador, do advogado, do técnico, do magistrado e do membro do Ministério Público, em igual grau, “uma mente aberta, suscetível para absorver as modificações e pulsações sociais que os rodeiam” , porquanto, o profissional que não acompanha a evolução social, jurídica e científica do seu tempo se conduzirá em desarmonia com as necessidades das partes envolvidas no litígio, comprometendo sobremaneira a efetividade da prestação jurisdicional, causando um desserviço à sociedade.

Digna de registro, por inovadora e atenta aos ditames constitucionais, é a decisão proferida pela 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao julgar a Apelação Cível n. 70002351161, originária de Canoas, que condenou o guardião de fato a pagar alimentos a adolescente, com doze anos de idade, que se encontrava aos seus cuidados desde os dois anos, sem que tivesse adotado as providências necessárias à regulamentação da adoção, como havia se comprometido com a mãe biológica do alimentando.

Os autos tratam de pedido de alimentos, promovido pela ex-companheira e pelo adolescente, pretendendo ver o varão condenado a pagar alimentos, tanto à ex-companheira como ao adolescente. Em primeiro grau, o Juízo de Família deixou de condenar o alimentante a alcançar a verba alimentar à ex-companheira, porquanto detentora de pensão que recebia desde antes de constituir a união estável; bem como ao adolescente, em razão de não ser ele o responsável legal pelo alimentando, uma vez que não havia guarda, tutela ou adoção previamente deferida.

O adolescente, irresignado, apela da sentença de primeiro grau, vindo o feito a ser distribuído à 7ª Câmara Cível do TJRGS. A Câmara, por unanimidade, entendeu em dar provimento parcial ao recurso, a fim de condenar o alimentante a pagar pensão alimentícia ao adolescente. Segundo os autos, o casal, na vigência da união estável, recebeu da genitora a criança, então com dois anos de idade, assumindo o compromisso de pleitear em Juízo a sua adoção. Passam-se dez anos, rompe-se a união estável sem que os companheiros tivessem sequer buscado a guarda judicial da criança. Diante das dificuldades da companheira para manter o adolescente, ajuíza a ação de alimentos, alegando que o companheiro era o provedor da família, não tendo condições de, sozinha, arcar com as despesas para a sua manutenção. Em sessão de julgamento, ocorrida em 18.04.01, tendo como Relator o eminente Des. José Carlos Teixeira Giorgis, a Câmara, por unanimidade, decidiu:

ALIMENTOS. UNIÃO ESTÁVEL. NECESSIDADE. MENOR. GUARDA DE FATO. RELAÇÃO DE AFETO. (...) É coerente fixar alimentos para o menor, que há dez anos está sob a guarda de fato do casal, que tinha a intenção de adotá-lo, considerando a relação de afeto entre eles e a necessidade do pensionamento. Apelo provido, em parte.

Antes da vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, certamente não encontraríamos decisões do porte da acima mencionada, com evidente priorização do direito do adolescente sobre os interesses do adulto, como demonstra o acórdão oriundo da 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

Dentro da cadeia de transformações que são vivenciadas pelo novo Direito de Família, neste nascer de século, o mais importante parece ser a percepção que começa a florescer no meio jurídico no sentido da necessidade de se buscar uma capacitação mais específica para os profissionais lidarem com os dramas familiares, porquanto, na maioria das universidades, ainda não se encontram disponíveis em seus currículos noções sobre os direitos da criança, condizentes com o atual Direito de Família.

Do profissional que atua na área do Direito de Família, exige-se, cada vez mais, além do conhecimento dos institutos contemplados no Código Civil, a compreensão do funcionamento da estrutura psíquica, porquanto, “compreender o funcionamento da estrutura psíquica é compreender também a estrutura do litígio conjugal, em que o processo judicial se torna, muitas vezes, uma verdadeira história de degradação do outro”.

O tratamento dispensado às famílias que chegam ao sistema de Justiça em muito influenciará o seu destino, ocasionando um efeito importante nas pessoas envolvidas no conflito, “mesmo que de forma não perceptível, inconsciente”, porquanto, para as partes, o Estado e o Poder Judiciário são representantes da figura paterna.

É comum, nas demandas que chegam ao Juízo de Família, observar a inclusão da criança na conflitiva do casal, mostrando-se necessário, nestes casos,

auxiliar os pais num trabalho de discriminação entre seus conflitos conjugais mal elaborados e as necessidades da criança. Estas incluem a possibilidade de seguir tendo uma relação de continuidade, o que envolve uma relação de confiança e proteção que será proporcionada, se puder ser valorizado aquele que representa para a criança uma figura de apego. Num segundo momento, é preciso auxiliar os pais a reconhecerem a importância do papel de ambos na criação dos filhos.

Ponto a ser destacado é a forma de colher a oitiva da criança nos feitos em que está em jogo a alteração de guarda ou mesmo a regulamentação de visitas a um dos genitores. Dispõe o artigo 28, § 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que, sempre que possível, a criança ou o adolescente deverá ser previamente ouvido e a sua opinião considerada. Como realizar a oitiva da criança nos feitos em que os genitores arduamente disputam a guarda dos filhos ou mesmo a regulamentação de visitas? Como preservar a criança da violência que sobre ela recai nestas oportunidades, em especial, pela imaturidade, inabilidade e incapacidade dos pais em proteger os filhos?

Além de buscar conhecimentos advindos de outras áreas do conhecimento, como a psicologia, a psicanálise, a sociologia, devem os profissionais agir com criatividade e competência, utilizando os recursos disponíveis para o fim de preservar, ao máximo, a integridade da criança.

Neste contexto, vale lembrar a iniciativa desenvolvida junto à 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao julgar a Apelação Cível n. 70002444693, em que foi Relator o eminente Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves.

Tratava-se de acirrada disputa de regulamentação de visitas, requerida pelo pai, sobre quem recaía uma suspeita de abuso sexual à filha, uma criança, do sexo feminino, com sete anos de idade. No curso do volumoso processo, a criança já havia sido submetida a inúmeras avaliações, realizadas por diversos profissionais que, de forma isolada, haviam emitido seus laudos. Por ocasião do julgamento, por não se mostrar suficientemente esclarecida a alegada suspeita, por proposição do Ministério Público, através da Procuradora de Justiça Ângela Célia Paim Garrido, devidamente acolhida pelas partes, entendeu a Câmara de suspender o julgamento do recurso, a fim de que as partes fossem submetidas à avaliação, agora por equipe interprofissional, sob a coordenação de Médica Psiquiatra nomeada no ato.

Composta a equipe, integrada por duas psiquiatras, uma pediatra, uma ginecologista infanto-puberal, três assistentes sociais e igual número de psicólogas, partiram os profissionais para a realização da tarefa que incluía a avaliação do casal e de suas respectivas famílias de origem, bem como da menina, com posterior elaboração de parecer técnico, contendo “diagnósticos, indicações terapêuticas e sugestões quanto ao regime de visitas” (fl. 260 dos autos da Apelação Cível n. 70002444693, 7ª Câmara Cível do TJRGS). Durante a avaliação, a criança foi entrevistada apenas por uma das Médicas Psiquiatras que, mediante expressa autorização dos responsáveis, filmou a entrevista, possibilitando que o material viesse a ser analisado pela segunda Perita Psiquiatra, evitando novas e desnecessárias exposições da criança.

A avaliação, firmada pela equipe interprofissional, após elencar várias justificativas, recomenda:

a) Estabelecimento de um processo progressivo de visitas paternas, assistidas por um profissional previamente indicado;

b) Estabelecimento de um esforço importante de proteção urgente da menina através da limitação imediata do massacre representado pelas reiteradas exposições da mesma a processos de avaliação;

c) Acompanhamento psicoterápico individual do pai, da mãe e da filha comprovado;

d) Atenção especial aos vínculos mãe-filha e pai-filha deverá ser considerada no curso dos atendimentos individuais e do acompanhamento das visitas, com vistas a avaliar a necessidade de uma intervenção de terapia familiar;

e) Embora a criança não deva decidir quanto ao regime de visitação, ela deve ser ouvida na sua forma, ritmo e momento;

f) Avaliação do curso do desenvolvimento das visitas pelo profissional assistente. A ele caberá: observar o comportamento e as reações tanto da criança quanto de seus pais; orientar possíveis manejos durante o contato; informar e orientar aos demais profissionais e familiares as reações da menina, que julgar importantes; avaliar os benefícios dos encontros e sua evolução na qualidade de interação; interromper os contatos ou sugerir sua interrupção sempre que considerar que estes encontros não estão sendo nem adequados nem benéficos para a menina;

g) O pai não pode ficar sozinho com a filha, considerando o desgaste deste vínculo, o sentimento de ameaça, desproteção e animosidade da menina. Este prazo deverá ser mantido até o momento do próximo relatório do profissional que acompanha a família.

Sempre que o pai estiver em contato com a menina o profissional assistente deverá estar presente.

O relato do profissional que acompanha as visitas deverá ser feito de forma oficial, no período de 18 meses, aproximadamente, e através deste será avaliado o seguimento do trabalho junto a esta família.

Feitos envolvendo suspeita de violência sexual intrafamiliar costumam vir revestidos de dificuldades de avaliação, especialmente em decorrência do mecanismo de negação, impedindo, muitas vezes, que se possa definir a melhor maneira de oferecer eficaz proteção à criança.

A experiência relatada mostra alternativa que deveria ser mais explorada pelo sistema de Justiça, isto é, a utilização de equipes interdisciplinares, integradas por profissionais capacitados, ou equipes interdisciplinares, vinculadas a Instituições reconhecidas na comunidade e/ou ligadas a Centros Hospitalares ou Instituições de Ensino, devidamente reconhecidas.

Aspecto relevante diz respeito, ainda, à relação que se estabelece entre a criança a ser periciada e o perito, em especial, o perito psiquiatra, para assinalar que a relação com a criança e o adolescente nunca é diádica (o periciando e o psiquiatra), e sim poliádica, uma vez que “entram em cena outros atores sociais relacionados com a criança, como pais, cuidadores, instituições, etc.”  De outro lado, não se mostrará ética a conduta do psiquiatra-perito que, em disputas de guarda dos filhos, por exemplo, ouvir apenas uma das partes ou só a criança, valendo lembrar que “é necessário que as partes se sintam adequadamente contempladas para darem sua versão, em termos de tempo e de número de sessões” , explicando, com clareza, mesmo para crianças pequenas, o objetivo e a natureza dos encontros de avaliação.

De outra banda, cabe salientar que não bastam os laudos e pareceres se limitarem a apontar os problemas detectados na família examinada, cabendo aos técnicos, dentro de sua esfera de atuação, oferecer propostas de encaminhamento ao conflito que desembocou no sistema de Justiça, sob pena de servirem unicamente para acirrar os ânimos e atribuir a culpa de um ou de outro, negligenciando, mais uma vez, a proteção da criança.

O novo Direito de Família descortina inúmeras e valiosas oportunidades de garantia dos direitos fundamentais à criança e ao adolescente, estando, nas mãos dos profissionais que atuam nos conflitos de família a responsabilidade de dar eficácia aos direitos que a Constituição Federal de 1988, com tanta sensatez, lhes outorgou.



CONCLUSÃO

A família, assim como o novo Direito de Família, passa por profundas modificações, acompanhando a evolução do conhecimento científico, dos movimentos sociais e políticos, bem como do processo de globalização, exigindo uma capacitação maior dos profissionais que integram o sistema de Justiça, a fim de que suas ações tenham eficácia na vida daqueles que vêem seus traumas expostos ao Juízo de Família.

Na atualidade, não há como desvincular o novo Direito de Família do Direito da Criança e do Adolescente, urgindo que se invista em ações interdisciplinares, sem perder de vista a aplicação dos princípios da dignidade humana e da prioridade absoluta à infância, em atenção ao comando constitucional vigente.

Novos investimentos devem ser dirigidos na formação e na capacitação dos profissionais que se dedicam a atuar nas áreas de Família e da Criança e do Adolescente, alargando as fronteiras do Direito para abranger, também, a compreensão da alma humana, por demais atuante nos conflitos que são levados ao sistema de Justiça.

Não há como retroceder em face do atual estágio de desenvolvimento da civilização. Doravante, os esforços dos profissionais que integram o sistema de Justiça devem se voltar a acompanhar os avanços verificados na área dos direitos humanos fundamentais, a começar pelo direito à convivência familiar, em especial, à criança e ao adolescente, sem o que contribuiremos muito mais para o descompasso dos modernos paradigmas que estruturam o Estado Democrático de Direito do que para o bem-estar da civilização.


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DOUTRINA - A COMPREENSÃO DOS PRECONCEITOS NO DIREITO DE FAMÍLIA PELA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA

BELMIRO PEDRO WELTER, Promotor de Justiça, Mestre e Doutorando em Direito pela UNISINOS, Professor e autor de obras de Direito de Família.

(escrito em junho.2006)

SUMÁRIO: 01) considerações iniciais; 02) a compreensão dos preconceitos no Direito de Família pela hermenêutica filosófica; 03) considerações finais; 04) referências bibliográficas.

01 Considerações iniciais
Buscando cada vez mais uma evolução do Direito de Família, justamente porque a humanidade sempre está evoluindo, o que, aliás, é da natureza humana, trago à comunidade jurídica um novo olhar, não mais com base na dogmática jurídica, nem na hermenêutica tradicional, mas, sim, com âncora na hermenêutica filosófica, de autoria do alemão Hans-Georg Gadamer, à medida que a “hermenêutica é a Arte do entendimento”, é filosofia e “uma forma de realização da vida social humana, que em última formalização representa uma comunidade de diálogo” .
O rancho familiar é o apanágio da humanidade, em que há necessidade de diálogo, de conversação, de entendimento, de aceitação da diferença, de ouvir e de ser ouvido. O diálogo não é só condição de possibilidade da hermenêutica, mas, principalmente, condição de possibilidade de convivência e compartilhamento em família, em que a linguagem somente se dá no diálogo, no vaivém da palavra, na conversação, no aceitar que o outro possa ter razão, na retórica , porquanto a linguagem “nos oferece a liberdade do dizer a si mesmo e deixar-se dizer”. Contudo, um dos grandes problemas da linguagem em família é que seus membros, cônjuges, conviventes, pais, filhos, irmãos, parentes, têm, muitas vezes, ouvidos de mercador, de não estarem mergulhados na mesma linguagem genética, afetiva e ontológica, e de ouvir apenas a si mesmo, buscando com tanta compulsividade os seus próprios interesses que não conseguem ouvir o que dizem os membros da família. É por isso que Gadamer diz que a capacidade constante de voltar a dialogar, de ouvir o outro, é a verdadeira elevação do homem a sua humanidade, porque “a incapacidade para o diálogo parece-me ser mais a objeção que se lança contra aquele que não quer seguir nossas idéias do que uma carência real no outro”.
Portanto, em Gadamer, é possível extrair uma leitura da família, porque a sua doutrina da compreensão, da linguagem universal, significa conversar, perguntar e responder, de ouvir e ser ouvido, da espiral hermenêutica, do método universal, da suspensão dos preconceitos, da fusão de horizontes, da tradição, enfim, da célebre mensagem de que “não haja coisa alguma ali onde se rompe a palavra” . Onde reside a palavra, a conversação, o diálogo, continua o autor, compreende-se a verdade do texto, do ser humano, da família, que será desvelada unicamente dentro da genética, da afetividade e da ontologia, porquanto “compreender é o caráter ontológico original da própria vida humana”.
O afeto, o amor, é arte , canto , poesia, sabedoria, linguagem , educação, conhecimento, inteligência , saúde , felicidade, liberdade, enfim, o afeto é a seiva que alimenta o sentido da vida, que se engendra e se identifica nos mundos genético, afetivo e ontológico. Mas o afeto, o amor, também é desafeto e desamor, porque, “ao mesmo tempo, nos cega e nos ilumina”, fazendo parte da existência , da natureza humana , da linguagem do ser humano ser-em-um-mundo. O afeto não é apenas um direito fundamental individual e social de afeiçoar-se ao outro ser humano (artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição do País) , como também um direito à integridade de sua natureza humana, genética, afetiva e ontológica. Mas, a família, lembra a doutrina , não é unicamente afetiva, mas também desafetiva, residindo no País um falso preconceito quanto às famílias, ao se pensar que sempre respiram a afetividade, havendo, pois, a necessidade de “acabar com a imagem idealizada da família feliz, que o Estado protege e ninguém pode interferir. É preciso chamar a atenção da sociedade de que a família não é exclusivamente um lugar de afeto!”. Para tanto, cresce a importância da hermenêutica filosófica no Direito de Família, principalmente porque a compreensão familiar afasta “a hipocrisia, a falsidade institucionalizada, o fingimento, o obscurecer dos fatos sociais, fazendo emergir as verdadeiras valorações que orientam as convivências grupais” .
A afetividade não é somente o direito de amar, de ser feliz, mas também o dever de ser leal, solidário e, principalmente, compreender o outro membro familiar, o que significa um rompimento com a individualidade e com os preconceitos. Nessa senda, Gadamer  aduz que a compreensão do Outro, que, em Direito de Família, é o cônjuge, o convivente, pais, avós, filho, irmão, parentes, “rompe com a centralidade de meu eu, à medida que dá a entender algo”. É dizer, o cerne da compreensão em família é deixar que o outro fale, aceitando seus argumentos, compreendendo o que ele diz e, de quebra, admitindo que ele pode estar certo e nós errados, pois, na montanha da vida , a possibilidade de o outro ter direito é a alma da hermenêutica . A compreensão significa acordo, aceitação da alteridade, da diferença entre todos os humanos, mediante o envolver-se de seus membros por meio da pergunta e da resposta, do entrar na conversação, permitindo ser interpelado e interpelar, abrindo espaço à diferença ontológica, que reside em cada ser humano, enfim, esquecer a tradição histórica da posse e do domínio no rancho familiar, deixando que nele habite a liberdade, o vir-à-fala, o vaivém do diálogo, a aceitação e a possibilidade de que algo seja dito, sem que isso signifique ofensa, e sim um direito/desejo do ser humano em ouvir e ser ouvido. Com razão, nesse sentido, o filósofo alemão Gadamer , ao aduzir que “ninguém é mais intolerante do que aquele que quer comprovar que aquilo que ele diz deve ser a verdade”. O autor adverte que ser compreensivo, de antemão, mesmo diante das réplicas do outro, “nada mais é do que tirar o corpo fora do postulado feito pelo outro. É um modo de não se deixar dizer nada”.
Assim, é posta à disposição da comunidade jurídica e política essa outra forma de compreensão do Direito de Família, mediante um olhar pela hermenêutica filosófica, à medida que tudo nesta vida é filosofia, não pelo mundo das idéias, como queria Platão, e sim pela magna doutrina gadameriana, de que a hermenêutica é realidade, é filosofia, é práxis, é o dia-a-dia do ser humano, é o modo de ser, o jeito de ser, são as circunstâncias de cada humano, enfim, é a diferença ontológica que reside em cada um dos bilhões de humanos.

02 A compreensão dos preconceitos no Direito de Família pela hermenêutica filosófica
O pré-juízo (prejuízo, preconceito, pré-conceito, juízo prévio, conceito prévio), em Gadamer, é resgatado de seu caráter depreciativo recebido da tradição iluminista. O Iluminismo , informa Gadamer, impôs o matiz negativo ao termo preconceito (pré-conceito, prejuízo, pré-juízo, conceito prévio, compreensão prévia), porque ainda não estaria fundamentado, tendo em vista que, pela dogmática jurídica, somente tem sentido o que é legitimado racionalmente, o que se dá mediante um método, que não deixa espaço para outros modos de certeza. Todavia, Gadamer desvelou o conceito de preconceito também no sentido positivo, vez que existem preconceitos autênticos (puros, legítimos) e inautênticos (impuros, ilegítimos). Isso quer dizer que a palavra pré-juízo não possui conotação apenas negativista, e sim um juízo prévio (negativo ou positivo) que se forma antes da compreensão do texto, que sempre pode ser revisto, re-projetado, pois a expressão preconceito não significa, em princípio, um falso juízo, com conceito prévio negativo, e sim um juízo que se forma antes da efetivação da compreensão, podendo ser valorado positiva ou negativamente .
A pré-compreensão, o pré-conceito, o juízo prévio, não decorre unicamente do texto como também do ser humano e da família, isso porque interpretar a vida humana é como interpretar um texto recoberto por séculos de exegese distorcida. Quando da interpretação e da compreensão de um texto, do ser humano e da família, são necessárias a purificação de nossa prévia posição, preconceitos, aproximação e visão hermenêutica, para que elas sejam originais e genuínos . Esse é o grave problema da metafísica, da dogmática jurídica, porque o enunciado, a súmula, o verbete, a lei, a fala da autoridade, etc. seqüestram e devassam o texto original e a humanização do ser humano, ao não admitir a sucessiva interpretação e revelação dos diversos aspectos e sentidos.
A hermenêutica filosófica afasta esse véu metafísico, essa tranqüilidade tentadora dos operadores jurídicos e do Legislador, mediante corte vertical do acontecer do círculo da pré-compreensão, da tradição, da fusão de horizontes, dos pré-juízos autênticos e inautênticos, que se circunscrevem ao método fenomenológico, abissal, sem fundo, universal , em que a interpretação ocorre porque já houve a pré-compreensão do texto, pelo modo de ser-no-mundo do intérprete. Com a hermenêutica filosófica, o intérprete ajusta o dialogar, o conversar, o palavrear, com a realidade de que se fala no texto, porque a compreensão de um texto é uma ampla compreensão de si mesmo  e uma inserção em nosso horizonte de pré-conceitos diferentes, resultando uma reformulação das perspectivas que nos são próprias . É por isso que a pré-compreensão, o preconceito, não está atrelado ao ato de interpretar, porque, antes de interpretar, já houve a pré-compreensão, que não é um dos modos de agir da pessoa, e sim um modo de ser, não havendo, assim, um operador e nem um resultado, e sim um sentido. Está, assim, excluída a possibilidade de um método de interpretação, porque a atribuição de sentido se dá na abertura, no desvelar e no modo de ser do ser humano no mundo.
Para interpretar, doutrina Streck, necessitamos compreender e, para compreender, temos que ter uma pré-compreensão, em que a linguagem não é um objeto, uma vinculação entre sujeito-objeto, e sim um relacionamento de sujeito-sujeito, um horizonte aberto pela compreensão histórica da tradição, um fio condutor da virada da hermenêutica, fazendo brotar o sentido da estrutura do texto e a produção do Direito. No interpretar, pontifica Streck, o ser humano está sempre diante de uma situação concreta, uma singularidade, daquele caso, que nunca é igual ao outro. Por isso, “o que pode ser correto na sua ‘generalidade’ pode não ser verdadeiro na sua singularidade, uma vez que a verdade é sempre desvelamento de uma situação concreta, aquele caso, nas suas especificidades” . O que liga o intérprete à situação hermenêutica é a compreensão histórica da tradição, a hermenêutica filosófica, que é o (re)aparecimento dos fenômenos à luz do sentido próprio da vida , porque ninguém escapa da história, do passado e do presente, que são a proveniência do ser humano, que surte efeito nos fenômenos da convivência, significando um conjunto de acontecimentos e influências que atravessa o passado, presente e futuro .
A hermenêutica filosófica deixa de ser uma aproximação entre um sujeito e um objeto, passando a ser um relacionamento entre um sujeito e outro sujeito, não mediante um método de interpretação, mas, sim, com a utilização de todos os métodos, numa análise fenomenológica, sem fundo, abissal, universal, com lastro na fusão de horizontes, na pré-compreensão, na espiral hermenêutica, na compreensão histórica da tradição e nos preconceitos claros e opacos. Pela hermenêutica filosófica é vista a história, o mundo e a tradição da vida numa espiral hermenêutica entre passado, presente e futuro, em que são (re)velados os preconceitos, formando uma pré-compreensão do texto, afastando, portanto, a interpretação subjetiva, pessoal, do intérprete, para partir à pré-compreensão do texto, que quer dizer o conhecimento antes de compreender, decorrente do acontecer do método universal, fenomenológico, com o círculo hermenêutico, os preconceitos, a compreensão da tradição histórica e a fusão de horizontes, recuperando a historicidade do sentido do texto, pelo que a pré-compreensão é sempre produtiva, e não reprodutiva, pois é atualizada pelos fenômenos sociais que sempre estão se renovando. Numa só palavra, a compreensão do Direito de Família passa, necessária e obrigatoriamente, pelo filtro dos preconceitos impuros, que precisam ser purificados em cada nova compreensão do texto, da família, do ser humano, à medida que todo o ser humano está sendo alimentado, diuturnamente, pelos preconceitos preconceituosos, pelos preconceitos puros e impuros, emergindo, com isso, a necessidade de uma parada frente ao texto, ao ser humano, à família, para que o intérprete mergulhe no mundo da vida, reconhecendo que é um ser preconceituoso e que precisa afastar essa conduta do plenário jurídico, pois, em caso contrário, seus preconceitos ilegítimos não permitirão a plena compreensão do texto, do ser humano, da família.
Nas palavras de Stein, lembrando Heidegger, a pessoa e o essencial das coisas tendem para o disfarce ou estão efetivamente encobertos, havendo, pois, o que ele denomina de o primado da tendência para o encobrimento, significando que ideologia, interesse, repressão, tortura, alienação, reificação, são modos de totalização que comandam nossas teorias sobre o homem e a história . O reconhecimento do caráter essencialmente preconceituoso de toda compreensão não é possível ser descoberto mediante um método, que se funda na razão humana, adverte Gadamer, mas, sim, pelo encontro do diálogo entre o passado e o presente, cujo confronto é tarefa permanente, incompleta, para que possamos rever, reavaliar, reprojetar as nossas posições prévias, os nossos juízos prévios. Para que o intérprete possa distinguir os preconceitos legítimos e ilegítimos, para tornar possível a compreensão, é indispensável o tempo, porque, na visão de Gadamer , “o tempo não é primeiramente um abismo que se deve ultrapassar porque separa e distancia”, mas é o fundamento que sustenta o acontecer, no qual se enraíza a compreensão atual. O que importa, prossegue o autor, é acolher a distância temporal como uma possibilidade positiva e produtiva da compreensão, que é preenchida pela “continuidade da origem e da tradição, em cuja luz se nos mostra tudo o que nos é transmitido”.
A hermenêutica, anota Gadamer, inclui sempre um encontro com as opiniões do outro, que vem, por sua vez, à fala. Deve haver a vinculação do intérprete ao texto, ao ser humano e à tradição histórica da família, porque sem essa espiral hermenêutica, sem esse vínculo, não pode haver diálogo. Quem quiser compreender um texto deverá realizar um projeto, continua Gadamer, lançando, de antemão, um sentido da parte e do todo, com base em seus preconceitos autênticos e inautênticos. O primeiro sentido do texto se mostrará com certas perspectivas, dependendo do que o intérprete já sabe sobre o que está pesquisando. Esse sentido preliminar é um projeto prévio que sofre uma constante revisão, na medida em que o intérprete se aprofunda no sentido do texto , tornando, por isso, inviável a reprodução de sentido .
Em toda a compreensão do texto, da família, do ser humano, o intérprete sempre expõe os seus preconceitos límpidos e turvos, porque não existe um ser humano (da criança ao idoso) puro, isento de prejuízos (preconceitos), motivo pelo qual não é a vontade do intérprete ou a do texto que deve se impor, e sim o dialogar entre o texto e o intérprete, os quais já estão inseridos, previamente, em um mundo pré-posto, pré-lançado, em uma compreensão histórica da tradição da família. A esse respeito, Gadamer fala dos pré-conceitos que pesam sobre a visão dos fatos históricos, afirmando que os pré-juízos de um indivíduo, muito mais do que seus juízos, são a realidade histórica de seu ser , havendo necessidade de purificá-los, pelo seguinte: a) parte dos pré-conceitos não são elimináveis, e fingir-se não tê-los “significa permanecer mais gravemente suas vítimas e prisioneiros; ou então se permanece vítima do mais perigoso de todos, o preconceito de neutralidade, o presumir não ter preconceitos”; b) os preconceitos são os meios para agilizar o nosso encontro com a realidade do mundo, são o pré-julgar e o pré-ver que orientam o nosso juízo e o nosso olhar .
É por isso que Gadamer vai dizer que quem quiser compreender um texto não pode de antemão abandonar-se cegamente à causalidade das próprias opiniões, aos seus preconceitos, não ouvindo a opinião do texto e da tradição histórica da família. É aí que Gadamer pronuncia a célebre frase, de que quem quiser compreender um texto está disposto a deixar que ele diga alguma coisa, o que não significa a subjugação, neutralidade, auto-anulamento do intérprete ao texto, esquecendo as próprias opiniões sobre o que se pretende compreender, e sim a suspensão dos conceitos prévios (pré-conceitos, pré-juízos), uma conduta de abertura para o texto, ao contexto, à opinião do outro, à tradição histórica, uma atitude hermenêutica receptiva para a alteridade do texto, justamente porque, alerta Gadamer, os preconceitos que não são notados são justamente os que nos tornam surdos para a coisa de que nos fala a tradição, querendo dizer que “o intérprete não está em condições de distinguir por si mesmo e de antemão os preconceitos produtivos, que tornam possível a compreensão, daqueles outros que a obstacularizam e que levam a mal-entendidos” . Portanto, prossegue o filósofo alemão, o intérprete deve permanecer neutro e receptivo ao texto, deixando que ele se apresente a si mesmo em sua alteridade, “de modo a possibilitar o exercício de sua verdade objetiva contra a opinião própria” , mantendo a necessária distância histórica e uma abertura para o diálogo entre quem compreende e quem busca compreender , porquanto é no palavrear com outras pessoas, textos e culturas que os preconceitos são corrigidos , inclusive porque “cada texto tiene su propia unidad de intención, que no es siempre ni necesariamente la intención del que lo escribe” .

03 Considerações finais
Como em todo o texto devem estar em jogo os preconceitos, não há como negar que é estranho que a Constituição do País não seja vista pelo prisma do estranhamento, do assombro, da alteridade, dos preconceitos do intérprete e da compreensão da tradição histórica do Direito de Família, porque a norma constitucional é um modo de ser-no-mundo, um existencial, tendo rompido com tudo o que havia anteriormente, sendo um novo marco histórico, uma nova Era, o Tempo do constitucionalismo. Mesmo assim, a nacionalmente reconhecida Constituição Cidadã continua deambulando descritivamente, (des)tratada pelo velho e surrado discurso do senso comum dos juristas, que continua exigindo o cumprimento de dezenas de preconceitos, entre os quais podem ser citados os seguintes:
a) o acolhimento unicamente da voz do sangue, esquecendo-se que a natureza humana é, simultaneamente, genética, afetiva e ontológica;
b) a necessidade do procedimento de habilitação e de celebração do casamento e dos processos de separação e de divórcio, visto que não é a lei, e sim o fim do mundo afetivo, a natureza humana, que (des)constitui a comunhão plena de vida genética, afetiva e ontológica. Quer dizer, não é legislador, e sim o ser humano quem vai determinar o início e o fim do mundo afetivo, motivo pelo qual, para (des)casar, basta comparecer no Cartório de Registro Civil, munido dos documentos, para, no mesmo instante, possa ser constituído ou desfeito o casamento;
c) a desigualdade entre união estável e casamento, quando ambas as entidades familiares têm por finalidade edificar o mesmo mundo afetivo do humano;
d) a rejeição da união estável homoafetiva, esquecendo-se que a natureza humana é genética, afetiva e ontológica, a qual não distingue a união entre homem com mulher, homem com homem, mulher com mulher (gêneros humanos), mas, sim, entre seres humanos;
e) a necessidade do processo de adoção, prosseguindo na tri-milenar discriminação entre os filhos genéticos e afetivos. Há mais de três mil anos talvez houvesse razão para ser exigido um processo de adoção, em vista da ausência de igualdade no rosto familiar, mas, em um mundo universalizado em vários segmentos sociais, em um País em que o constitucionalismo está assentado sobre o Estado Democrático de Direito e numa principiologia republicana, não é razoável a existência de lei, de doutrina e de jurisprudência impondo um processo para alguém conviver e compartilhar em família. Numa só palavra, a comunidade jurídica e o Legislador preferem que milhões de crianças e adolescentes sejam moradores de rua ou meninos do tráfico do que permitir que a paternidade afetiva deles possa ser reconhecida voluntariamente, sem processo, para que sejam moradores de lares genéticos, afetivos e ontológicos;
f) a concessão dos alimentos unicamente com base no binômio necessidade-possibilidade, quando deveria ser com âncora no trinômio necessidade-possibilidade-afetividade, vez que não basta compreender a estupidez social tirânica da exclusividade do vínculo genético, mas, essencialmente, do mundo afetivo dos seres humanos, pelo que, para o membro familiar ter direito a alimentos, é preciso preencher o trinômio necessidade-possibilidade-afetividade. O mesmo ocorre com relação aos demais direitos da família, como os de herança, porque a herança genética não preenche os requisitos da natureza humana, havendo necessidade também, para herdar, por exemplo, ostentar a herança afetiva;
g) a esterilidade da discussão da culpa no Direito de Família, porquanto é a linguagem humana do fim do mundo afetivo que (de)marca a fronteira da (des)união familiar. O casamento e a união estável situam-se dentro do mundo afetivo, pelo que concordo que o fim do afeto é o fim do mundo, mas não dos três mundos humanos, e tão somente do mundo afetivo, da comunhão plena de vida afetiva, não sendo razoável manter o liame jurídico entre duas pessoas que não mantém o diálogo pela linguagem afetiva, acorrentando-os a um mundo que não mais existe. É por isso que o humano, para manter-se humano, precisa libertar-se desse imundo conjugal ou convivencial, porque a entidade familiar é um pacto de afeto, e não um pacto até que a morte ou a lei os separe. A manutenção jurídica, de forma coercitiva, de duas pessoas que não ocupam o mesmo espaço no mundo afetivo, é coisificar o ser humano, confinando os cônjuges ou conviventes ao mundo dos interesses monetários, ao mundo do instinto, ao mundo genético, confiscando-lhe, portanto, o direito de habitar os mundos genético, afetivo e ontológico;
h) o afastamento do direito do filho afetivo em conhecer (investigar) o seu mundo genético, na medida em que o ser humano tem direito à sua natureza humana genética, afetiva e ontológica, inclusive, se necessário, da condução coertiva do investigado, único responsável pelo confisco da tridimensionalidade da natureza humana;
i) a exclusão dos mundos afetivo e ontológico do ser humano mediante o aforamento da ação negatória de paternidade, como se o ato de reconhecer a paternidade, em pleno século XXI, ainda fosse uma conduta de aquisição de propriedade e de posse do ser humano, portanto, renunciável e transferível, a qualquer tempo. É dizer, o ideário, a vontade, a manifestação da paternidade não é efetivada dentro do mundo genético, do mundo das necessidades humanas, e sim no âmago dos mundos afetivo e ontológico, motivo por que, uma vez reconhecida/declarada a paternidade, nenhum ser humano poderá negá-la, revogá-la, sob pena de coisificar a natureza humana. Numa só palavra, não somente o reconhecimento da paternidade, como também a própria natureza humana, genética, afetiva e ontológica é indisponível, intangível, imprescritível, irrenunciável, intransferível, irrevogável etc.;
j) a diferença a ser localizada entre os humanos não é apenas genética e/ou afetiva, mas, sim, ontológica, que não poderá ser compreendida mediante um método, um procedimento, um processo, uma escada, de interpretação, de compreensão. É dizer, dentro do ser humano estão implantados o método, a escada, o procedimento, o processo, a igualdade, a liberdade, a solidariedade, o (des)afeto, a lei, a doutrina, a jurisprudência, a súmula, o verbete, o enunciado, a natureza humana genética, (des)afetiva, ontológica etc. É por meio de um choque hermenêutico filosófico que o método, o processo, o procedimento, levantam o ser humano pelos cabelos, deixando-o suspenso. Essa suspensão da natureza humana é efetivada por uma escada, um processo, um procedimento, endógeno (interno), e não exógeno (do lado de fora), do ser humano, pelo que ele não poderá ser alcançado pelos métodos de interpretação que se localizam do lado de fora do humano. Quer dizer, todos os procedimentos/processos contrários à tridimensionalidade da natureza humana são formas de desumanizar, objetificar, coisificar, o ser humano.
É por isso que Streck denuncia que o discurso da dogmática jurídica “é o desde-já-sempre e o como-sempre-o-Direito-tem-sido, que proporciona a rotinização do agir dos operadores jurídicos, propicionando-lhes, em linguagem heideggeriana, uma ‘tranqüilidade tentadora’” . É justamente essa a linguagem do intérprete, pois permanece, há vários séculos, em sua tranqüilidade tentadora, ao rejeitar a normatização e/ou declaração da afetividade e da ontologia, compreendendo o Direito nos estreitos limites da lei, sendo bem mais cômodo prosseguir com o desde-já-sempre e o como-sempre-o-Direito-tem-sido, porque isso evita que sejam expostos os preconceitos e desenvolvida uma nova leitura e uma nova compreensão do mais importante texto do País. Nossos prejuízos, conclui Streck, estão alicerçados em uma cultura liberal-individualista, em que as leis infraconstitucionais não sofreram a indispensável e necessária filtragem hermenêutico-constitucional, fazendo com que os pré-conceitos estejam tomados por um histórico de jurisdição constitucional que beira ao surrealismo.
A respeito da necessidade da passagem do texto legal pelo filtro da Constituição do País, os Tribunais pátrios têm citado Lenio Luiz Streck , o qual, na esteira do garantismo de Ferrajoli, tem dito que o texto tem dois âmbitos: vigência e validade. Quer dizer, não basta que o texto seja vigente, mas que também tenha validade, porquanto, embora vigente, o texto somente será válido se de acordo com o texto constitucional, em sua materialidade e substancialidade. Noticia o autor também que é por isso que o Legislador ordinário (por exemplo, do ECA e do Código Civil), não é livre para estabelecer leis, que deverão passar sempre pela “necessária filtragem hermenêutico-constitucional do sistema jurídico, fazendo com que todo o ordenamento fique contaminado pelo ‘vírus’ constitucional”. Streck lembra que, devido a essa ausência de antivírus constitucional, a doutrina, como Jiménes de Azúa, chegou a afirmar que, ao ser promulgada uma nova Constituição, “todos os Códigos deveriam ser refeitos, para evitar o mau vezo de se continuar a aplicar leis não recepcionadas ou recepcionadas apenas em parte pelo novo topos de validade, que é o texto constitucional”. Concluindo seu pensamento, Streck anota que, em vista da ausência da validade da lei frente à Constituição do País, caberá ao Poder Judiciário promover as correções dessas leis, com base em sua “função integradora e transformadora, típica do Estado Democrático de Direito”, utilizando-se, para tanto, dos mais recentes mecanismos hermenêuticos, por exemplo, “a interpretação conforme à Constituição, a nulidade sem redução de texto e a declaração da inconstitucionalidade das leis incompatíveis com a Constituição”.
A Constituição do Brasil, ao introduzir, por exemplo, os princípios da dignidade da pessoa humana a da igualdade entre todos os filhos, deveria ter sido seguida materialmente pelas leis infraconstitucionais. Entretanto, não foi o que aconteceu, pois o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Código Civil desvirtuaram o texto constitucional, ao continuarem exigindo um procedimento, um processo, para que o ser humano possa conviver e compartilhar em família. Portanto, embora sejam compreendidos como textos legais vigentes, o ECA e o Código Civil não são textos válidos frente à Constituição do País, justamente por causarem ofensa à materialidade e à substancialidade da Constituição Humana de 1988, que não recepcionou o procedimento, o processo, a objetificação, para que o ser humano possa conviver e compartilhar em família.
Qualquer interessado poderá sustentar a inconstitucionalidade do procedimento e do processo, mediante o que Streck  denomina de nulidade parcial sem redução de texto, para que sejam expungidos dos sentidos de uma ou de parte da norma. Depois, o autor explica a diferença entre a inconstitucionalidade de lei conforme a constituição e nulidade parcial sem redução de texto: “enquanto na interpretação conforme a constituição há uma adição de sentido, na nulidade parcial sem redução de texto há uma abdução de sentido”, cuidando-se, portanto, conclui o autor, de uma “decisão de acolhimento parcial qualitativa (e não quantitativa, porque o texto permanece na íntegra) da norma”.
Por isso, o julgador poderá declarar a inconstitucionalidade, não de todo o texto do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Código Civil, e sim unicamente das partes que exigem, por exemplo, um procedimento (de habilitação e de celebração, para casar), um processo (de adoção, de separação, de divórcio, de dissolução da união estável, para dissolver o mundo afetivo), isso porque, lembra o autor, todo ato judicial é ato de jurisdição constitucional, já que o julgador sempre faz jurisdição constitucional, sendo, por isso, “dever do magistrado examinar, antes de qualquer coisa, a compatibilidade do texto normativo infraconstitucional com a Constituição” .
A Constituição é um existencial, um modo de ser-no-mundo, mas Heidegger pondera que, paradoxalmente, quanto mais próximo o intérprete estiver do existente, mais distante estará da verdade hermenêutica-ontológica . Dessa forma, é preciso fazer uma parada obrigatória frente ao texto constitucional, perguntando a ele o que há de novo, o que mudou e qual o sentido da estrutura dessa revolucionária Carta Cidadã, colocando em jogo (em questão, no caso em concreto) os preconceitos, deixando que o texto diga alguma coisa, mas vinculando-nos a ele, porque onde não há vínculo, não pode haver diálogo , deixando a linguagem vir-à-fala, formando o círculo hermenêutico, a fusão de horizontes e incorporando a compreensão da tradição histórica do Direito de Família. Promover uma comparação entre a Revolução Francesa e a Constituição do Brasil talvez possa ser uma lembrança para que o intérprete abandone a sua tranqüilidade tentadora, pois a importância que os brasileiros deveriam dedicar à Constituição de seu País é a mesma que o mundo dedica à Revolução Francesa, vez que ambos são acontecimentos históricos que mudaram o percurso da humanidade e do Brasil, respectivamente, cujos textos e contextos sempre deverão ser relembrados e observados. É preciso, pois, como diz Streck , des-objetivar a Constituição, mediante a superação do paradigma metafísico do senso comum dos juristas, indagando pelo sentido do constitucionalismo, seu papel histórico-social no terceiro milênio.
Os preconceitos normativos, doutrinários e jurisprudenciais acima citados, por exemplo, são preconceitos impuros, que ocorrem desde a origem da família, quando, na visão de Engels , foi gestada a primeira divisão do trabalho, originando a opressão de classes, cabendo ao homem trazer a alimentação, tornando-se o proprietário dos instrumentos de trabalho e, na medida em que aumentavam os bens, assumia uma posição vantajosa frente à mulher, até que houve a abolição dos direitos de filiação e da herança feminina, direitos esses substituídos pela filiação e pelo direito hereditário masculino. É justamente pela existência de tantos preconceitos familiares, que se tornaram paradigmas impuros, que é tão difícil fragmentá-los, tendo em vista que o ser humano não admite ser portador de preconceito inautêntico, de que algum dia tenha sido ridículo, praticado alguma violência, uma infâmia, uma discriminação, uma tortura ou de ter cometido um pecado venial, porque o ser humano acredita cega e hipocritamente ser o único ser Ideal, campeão e semideus . Essa é uma das razões da comunidade jurídica e do Legislador resistirem aos avanços da hermenêutica filosófica, porque isso representaria a aceitação de suas falhas, de seus preconceitos adulterados, transformando-os em humanos impuros. É dizer, a hermenêutica filosófica somente conseguirá quebrar o paradigma espúrio dos laços de sangue se houver a mudança da crença da natureza do ser humano, que sempre foi, é e será genética, afetiva e ontológica, significando que todos os seres humanos são iguais em sua natureza, mas finitos, sujeitos a acertos, a erros e a conviver e a compartilhar, paradoxalmente, em três mundos diferentes e simultaneamente iguais.
A compreensão do Direito de Família deve ser no sentido de que lidamos com um ser humano não apenas genético, mas também afetivo e ontológico, o que exige a interpretação do Direito não mediante um método subjetivo, e sim universal, em que o intérprete, mediante o círculo hermenêutico e a fusão de horizontes, mergulha na tradição histórica do Direito de Família, procurando compreender o atual texto constitucional pelo contexto histórico das evoluções e revoluções da família. Com efeito, pelo Direito Romano, o homem tinha o poder de vida e de morte sobre a mulher, os filhos e escravos. No Brasil, por longos séculos, imperaram os paradigmas da discriminação, da hierarquia, da desigualdade familiar e da manutenção do casamento em detrimento da felicidade de seus membros. Mas, a contar do dia 05 de outubro de 1988, a Constituição Cidadã fez prevalecer os direitos e desejos de todos os membros da família, substituindo a hierarquização pela democracia, o autoritarismo, a arbitrariedade, a violência, o totalitarismo, a opressão e a tirania pela conduta digna, democrática, humana, solidária, protetiva, hermenêutica, genética, afetiva e ontológica no abrigo familiar. Portanto, a pré-compreensão do intérprete deve ser no sentido de que houve uma revolução familiar com a promulgação da Constituição Democrática e Republicana de 1988, em que tudo mudou, tudo se tornou digno, tudo se tornou democrático, tudo se tornou afetivo, tudo se tornou ontológico, tudo se tornou solidário, tudo se tornou hermenêutico, tudo se tornou filosófico, tudo se tornou um vaivém da palavra, tudo se tornou um modo de ser, um jeito, uma circunstância de ser em um mundo humano. Com esse círculo da compreensão, efetivado pela compreensão histórica da tradição do Direito de Família, o intérprete, pela fusão de horizontes, suspenderá os seus preconceitos inautênticos, impuros, ilegítimos, comungados anteriormente ao texto constitucional de 1988.
A compreensão de um texto não se dá mediante um método, que objetifica, coisifica o texto , o ser humano, a família, e sim pela palavra, pela linguagem, que, conforme Heidegger, é a casa do ser, é a habitação da essência do ser humano, ou, nas palavras de Gadamer, ser que pode ser compreendido é linguagem. Quer dizer, uma pausa deve repousar sobre a atual compreensão do Direito de Família, para que o texto da Constituição não seja compreendido unicamente pela visão do intérprete, nem do Legislador, mas deixar que o texto, a família, o humano digam algo, empreendendo, dessa forma, uma viagem hermenêutica filosófica ao âmago do método fenomenológico, da circularidade da compreensão histórica da tradição da família, da fusão de horizontes e da suspensão dos preconceitos, vez que no intérprete, no texto, no ser humano, na família, no caso em concreto, existem preconceitos que cegam e preconceitos que iluminam, tendo em vista que, ao nascer, somos lançados em um mundo já existente, um mundo de significados e de valores, um mundo abarrotado de conceitos prévios democráticos e tiranos, cabendo-nos a missão de identificá-los e purificá-los . E aquele que não se conscientizar dos preconceitos puros e impuros acaba se enganando sobre o que se revela sob sua luz, exigindo-se do intérprete uma conduta receptiva à alteridade do texto, da família, do ser humano, visto que um conceito prévio falso é uma pré-decisão, uma pré-compreensão, um pré-julgamento, que pode estar ocultando a verdade, causando, conseqüentemente, graves prejuízos à humanidade. Como compreender é sempre um interpretar, uma forma explícita da compreensão, o problema da linguagem, que ocupava uma posição ocasional e marginal na dogmática jurídica, passa, com a hermenêutica gadameriana, a ocupar o centro da filosofia .
Quando da compreensão da Constituição do Brasil, o intérprete deve deixar que a linguagem do texto, da família, do ser humano, digam alguma coisa, porque no es que únicamente nosotros conduzcamos la conversación, sino que también somos conducidos por ella , isto é, a linguagem nos diz que a Constituição é um acontecimento, a ocorrência de um fenômeno, uma viragem histórica, uma relevância para todo o povo brasileiro, a passagem de uma geração para outra, quando tudo ficou diferente, tudo mudou, tudo se transformou, tudo envelheceu, mas, ao mesmo tempo, tudo ficou novo, formou-se o poente e o nascente, o que antes foi, já não é, aparecendo algo novo, que tornou tudo novo, uma nova linguagem constitucional, transformando o (des)tratamento imundo do humano, da família, para uma linguagem com natureza e dignidade humana genética, afetiva e ontológica.
Porém, não basta que o País esteja mergulhado em uma nova Era Constitucional, se continua a viver o novo com o arcabouço jurídico velho, e sim que essa nova Idade seja compreendida pelo estranhamento, pelo assombro, pela admiração, pelo desconserto, pela perplexidade, pelo espanto, pela vinculação a um marco histórico de rompimento dos preconceitos turvos do passado. Esse espanto, que o intérprete e o Legislador ordinário devem ter diante do texto, do ser humano, da família, significa “que reconhecemos nossa ignorância e exatamente por isso podemos superá-la. Nós nos espantamos quando, por meio de nosso pensamento, tomamos distância do nosso mundo costumeiro, olhando-o como se nunca o tivéssemos visto antes, como se não tivéssemos tido família, amigos, professores, livros e outros meios de comunicação que nos tivessem dito o que o mundo é; como se estivéssemos acabando de nascer para o mundo e para nós mesmos e precisássemos perguntar o que é, por que é e como é o mundo, e precisássemos perguntar também o que somos, por que somos e como somos” .
Nesse horizonte, a doutrina gadameriana ensina que “todo esse desacerto, assombro e incompatibiliade na compreensão convida sempre a avançar a um conhecimento mais profundo” . Além disso, o autor sugere o entrelaçamento entre o intérprete e o texto, fazendo com que a pré-compreensão, os preconceitos, do texto, do ser humano, da família, não sejam formatadas unilateralmente pelo intérprete, pelo texto ou somente pelo caso concreto, mas, sim, pelo contexto entre o texto, o intérprete, o mundo, a tradição histórica da vida familiar, num círculo hermenêutico e de fusão de horizontes, com uma linguagem fenomenológica e universal, um modo de ser-no-mundo, um acontecer da universalidade dentro da singularidade e da singularidade dentro da universalidade , isso porque no se entiende la palabra aislada, no se entiende palabra a palabra .
Com isso, Gadamer pretende dizer que a indagação ao texto, ao ser humano, à família, propicia a compreensão desta indagação, aquela com a qual o texto, a família, o ser humano, interpelam o intérprete. Todavia, para perguntar, é preciso querer saber, confessar que não se sabe , sendo talvez esse o maior problema da comunidade jurídica e do Legislador, na medida em que falta a todos os humanos: a) a humildade para admitir que não sabemos; b) que temos preconceitos preconceituosos (ilegítimos, espúrios, impuros); c) que não nos apossamos integralmente do sentido e da linguagem do texto, do ser humano, da família. Isso vem ao encontro da advertência gadameriana, de que “sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar” , querendo dizer com isso que “compreender significa primeiramente entender-se na coisa e, só em segundo lugar, apartar e compreender a opinião do outro como tal” .
Há, asssim, premente necessidade do intérprete e do Legislador passarem à condição de lenhador, de guardião, de desvelador, de descobridor dos caminhos do texto, do ser humano, da família, desterrando os velhos conceitos prévios, pois, para perguntar, é preciso conhecer a coisa a ser pesquisada, discutida, examinada, compreendida/interpretada/aplicada, pois a expressão gadameriana – sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar  – serve justamente para evitar que os caminhos da floresta do texto, do ser humano, da família, não permaneçam sinuosos, preconceituosos, perdendo-se, subitamente, no não trilhado .
Nesse sentido, os seguidores  da doutrina gadameriana comentam que o intérprete que não tiver uma compreensão prévia, uma visão provisória, um juízo precoce, um pré-juízo, um experimentar a nós mesmos, uma exposição ao risco de ver-se surpreendido, não terá a mínima capacidade de colocar perguntas orientadoras ao texto, ao ser humano, à família. Isso significa que o “compreender recusa qualquer postura subjetiva de domínio e, em conseqüência, de instrumentalização do mundo objetivo”, porquanto “toda compreensão se efetua na linguagem e na história, por nós de modo algum objetiváveis”. Isso ocorre porque a hermenêutica filosófica gadameriana é “um curioso arrombamento, sem violência, da postura intelectual objetificadora de que somos herdeiros” , um giro ontológico em direção ao que vem a ser o objeto da compreensão: a linguagem .
A Constituição somente poderá ser desvelada, desocultada, descoberta, se o intérprete e o Legislador estiverem munidos de preconceitos puros, e não dos pré-juízos inautênticos da opressão e da tortura familiar. Nesse viés, concordo com Gabriel García Márquez , quando afirma o seguinte em sua “Crônica de uma morte anunciada”: Dai-me um preconceito e moverei o mundo, pelo que, parafraseando o autor, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, com preconceitos impuros é possível desvirtuar os sentidos das estruturas do texto constitucional, da família, do ser humano, mas, com pré-conceitos puros, move-se a Constituição, a família, o texto, o mundo, em direção ao verdadeiro significado, sentido, sentimento e linguagem de família e de ser humano genético, afetivo e ontológico.
Para conviver e compartilhar, o ser humano precisa compreender o outro, porque a família, o ser humano, têm natureza tridimensional, mergulhados na paz endógena e exógena de solidariedade, de compreensão, de diálogo, do vaivém da palavra, um jeito, um modo, uma circunstância, uma condição de ser e de estar-no-mundo. Se estar-no-mundo significa que o ser humano compreende e é compreendido, o estar-em-família é muito mais do que se entender uns aos outros, é amar-se, é respeitar-se, principalmente, em sua diferença ontológica, nessa comunhão plena de vida familiar genética, afetiva e ontológica, isso porque é na família que se instaura o mais puro e autêntico plenário da linguagem, do diálogo e da compreensão do ser humano em sociedade, em família e consigo mesmo. Nessa senda, Gadamer lembra uma passagem de Heidegger, quando ele afirmou que o ser humano ‘es weltet’, porque ele faz mundo, e isso significa que “quien escucha al otro, escucha siempre a alguien que tiene su propio horizonte”, fazendo com que nessa escuta ao outro “se abre el verdadero camino en el que se forma la solidariedad”. Essa forma brilhante e manifestamente humanitária de Gadamer visualizar a introspecção da solidariedade, que habita em cada ser humano, pelo simples fato de escutar o outro humano, é para que cada humano “aprenda a salvar las distancias y a superar los antagonismos entre nosotros” .
Antes de concluir o breve diálogo, registro mais uma mensagem de Gadamer, quando ele estudou os mistérios da saúde, referindo que “o paciente é uma pessoa, e não um ‘caso’” . Por isso, quando se lida com o ser humano, com a família, é preciso compreendê-los não como um caso, uma parte de um processo, querendo-se dizer que, quando da compreensão do texto, do ser humano, da família, não estão em jogo “casos”, “partes”, à medida que esses “casos”, essas “partes”, são pessoas, são humanos, somos todos nós, que convivemos e compartilhamos, simultaneamente, nos mundos genético, afetivo e ontológico.
Muito ainda precisa ser dito acerca do texto, da família, do ser humano e da infinita necessidade da conversação, do diálogo, do escutar e do ser escutado, da fusão de horizontes, da compreensão histórica da tradição familiar, dos conceitos prévios puros e impuros, da aceitação da diferença ontológica que habita em cada humano e da hermenêutica filosófica. Contudo, o texto precisa ser concluído, e o faço com o mesmo argumento apresentado pela magna doutrina de Hans-Georg Gadamer, quando ele encerrou a sua célebre obra Verdade e Método , nos seguintes termos: “Seria um mau hermeneuta aquele que imaginasse poder ou dever ter a última palavra”, pois a história está em curso e nunca compreenderemos, nem mesmo por meio da universalidade da hermenêutica filosófica, a totalidade dos acontecimentos do passado, do presente e do futuro, que sempre estão se renovando, portanto, presentes em cada nova compreensão do texto, da família, do ser humano. Isso significa que não existe a primeira, nem a segunda e nem a última palavra, porque somos seres históricos preconceituosos, motivo pelo qual cada compreensão é uma nova compreensão do texto, da família e dos três mundos genético, afetivo e ontológico do ser humano.

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