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quarta-feira, 8 de junho de 2011

VIDEO - UMA HISTÓRIA SEVERINA (bebê anencéfalo)

VIDEO - REPRODUÇÃO ASSISTIDA - ENTREVISTA (12.10.2010)

PARTE 1



PARTE 2

DOUTRINA - EMENDA CONSTITUCIONAL 66 - UMA LEITURA "POLITICAMENTE INCORRETA"

Luiz Felipe Brasil Santos 

                          (publicado em setembro.2010)



                              Poucos dias após a entrada em vigor da Emenda Constitucional 66, manifestei-me[1] no sentido de que a concretização das alterações por ela anunciadas dependeria ainda de mudanças a serem feitas no Código Civil, e que, enquanto não implementadas estas, subsistiriam os requisitos temporais para o divórcio bem como o próprio instituto da separação.
         O tema continua a render debate, embora, é preciso  reconhecer, com maciça predominância da corrente que sustenta a direta e imediata aplicabilidade do texto constitucional, com o desaparecimento da separação (judicial e extrajudicial) e abolição dos requisitos temporais para o divórcio.  Basta ver que, dos cerca de 20 artigos sobre o tema, publicados no saite do Instituto Brasileiro de Direito de Família (www.ibdfam.org.br), de lavra de diversos especialistas, com exceção do autor destas linhas, todos os demais se posicionam pela imediata aplicação do novo regramento.  Neste sentido opinam, dentre outros, Maria Berenice Dias, Paulo Luiz Netto Lobo, Zeno Veloso, Rodrigo da Cunha Pereira, Pablo Stolze Gagliano e Waldir Grisard Filho.
           O entendimento desses doutrinadores pode ser resumido no seguinte trecho de autoria de Paulo Luiz Netto Lobo[2]:
Há grande consenso, no Brasil, sobre a força normativa própria da Constituição, que não depende do legislador ordinário para produzir seus efeitos. As normas constitucionais não são meramente programáticas, como antes se dizia.
É consensual, também, que a nova norma constitucional revoga a legislação ordinária anterior que seja com ela incompatível. A norma constitucional apenas precisa de lei para ser aplicável quando ela própria se limita "na forma da lei".
Ora, o Código Civil de 2002 regulamentava precisamente os requisitos prévios da separação judicial e da separação de fato, que a redação anterior do parágrafo 6º do artigo 226 da Constituição estabelecia.
Desaparecendo os requisitos, os dispositivos do Código que deles tratavam foram automaticamente revogados, permanecendo os que disciplinam o divórcio direto e seus efeitos. O entendimento de que permaneceriam importa tornar inócua a decisão do constituinte derivado e negar aplicabilidade à norma constitucional.
(...)
Não podemos esquecer da antiga lição de, na dúvida, prevalecer a interpretação que melhor assegure os efeitos da norma, e não a que os suprima. Isso além da sua finalidade, que, no caso da EC 66, é a de retirar a tutela do Estado sobre a decisão tomada pelo casal. 
                            Em contrapartida, a autorizada voz de Sérgio Gischkow Pereira emitiu alerta em texto sob o título CALMA COM A SEPARAÇÃO E O DIVÓRCIO![3], onde, em síntese, sustentou:
Os equívocos dos entusiastas são dois: a) entender que a separação judicial (e também a extrajudicial) desapareceu; b) afirmar peremptoriamente que as exigências anteriores para o divórcio já foram eliminadas.        (...)
O mais recomendável é que de imediato se altere o Código Civil, retirando dele, se for o caso, a separação judicial (e, do Código de Processo, a extrajudicial), eliminando os requisitos de prazo para divórcio e definindo se a discussão de culpa permanece ou não. Não agir assim é provocar grande tumulto e divergências, tendo como resultado muito maior demora nos processos e o risco de futura epidemia de nulidades e carências de ação em milhares deles! O povo merece maior consideração!
                           Também cautelosa é a posição de Gilberto Schäfer, que, em interessante artigo intitulado A EMENDA CONSTITUCIONAL 66 E O DIVÓRCIO NO BRASIL[4], conclui que a referida Emenda, na parte que contém a regra do divórcio, tem efetividade mediata, ou seja, depende de uma mediação infraconstitucional do Direito Civil e  do Direito Processual Civil.  
                            Passados os momentos iniciais de avaliação, e ponderados os argumentos até aqui postos, acrescento outras reflexões sobre o tema.
                          A situação que se vive agora não é nova, pois fenômeno bastante similar ocorreu há 73 anos, quando da entrada em vigor da Constituição de 1937. Lançar o olhar sobre a história é sempre pedagógico.
                        A Constituição de 1934, atendendo forte pressão dos segmentos ligados à Igreja Católica, havia inserido no ordenamento jurídico brasileiro o princípio da indissolubilidade do vínculo matrimonial, conferindo-lhe dignidade constitucional, como estratégia para servir de barreira às tentativas de introdução do divórcio em nosso país[5].  Com esse objetivo, assim dispunha no art. 144:
Art. 144 - A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado.
        Parágrafo único - A lei civil determinará os casos de desquite e de anulação de casamento, havendo sempre recurso ex officio, com efeito suspensivo.
                 Observe-se que o princípio da indissolubilidade estava posto no caput do artigo, porém entendeu-se então ser necessário ir além e se fez constar no parágrafo único a regra de que os casos de desquite e de anulação de casamento seriam regulados pela lei ordinária, com recurso necessário, provido de efeito suspensivo[6].
             No entanto, quatro anos após, a Constituição de 1937 reproduziu, no art. 124[7], a mesma redação do “caput” do art. 144 da Carta anterior, suprimindo-lhe, porém, o parágrafo único, que fazia referência ao desquite e à anulação do casamento.  Qual a conseqüência dessa supressão?  Teria deixado de existir a possibilidade do desquite, por não mais constar do texto constitucional?  É Pontes de Miranda[8] quem responde:
A Constituição de 1937 entendeu que seria impróprio do texto constitucional conter regra jurídica processual de tal pormenor; e riscou dos seus artigos o parágrafo único do art. 144 da Constituição anterior. Isso não quer dizer que, desde 10 de novembro de 1937, revogado ficasse o direito correspondente. A regra jurídica continuou, como de direito ordinário, suscetível, portanto, de derrogação e ab-rogação pelos legisladores ordinários. O que lhe cessou foi a força de princípio jurídico constitucional.  (SEM GRIFO NO ORIGINAL)
                              Ocorreu então, como se vê, a mesma situação que vivenciamos hoje, e Pontes não deixou dúvida quanto às conseqüências: subsistência da legislação ordinária.
                       Ora, nesse contexto, a entender, em contrário, que houve revogação, seríamos forçados a admitir que o próprio instituto do divórcio estaria extirpado do ordenamento jurídico, caso fosse suprimido o § 6º do art. 226 da CF!  Não creio, porém, que semelhante heresia hermenêutica encontrasse eco em nosso meio!   
                       Neste passo, é necessário relembrar a distinção entre normas materialmente constitucionais e normas apenas formalmente constitucionais. As primeiras são aquelas que: (1) dispõem sobre a estrutura do Estado, definem a função de seus órgãos, o modo de aquisição e limitação do poder, e fixam o regime político; (2) estabelecem os direitos e garantias fundamentais da pessoa; (3) disciplinam os fins sócio-econômicos do Estado; (4) asseguram a estabilidade constitucional e (5) estatuem regras de aplicação da própria Constituição.   A seu turno, as regras formalmente constitucionais são as que, embora não tenham esse conteúdo, são postas na Constituição por opção política circunstancial do Constituinte. 
                          É este o caso das atinentes ao casamento e às formas de sua dissolução. Em dado momento da história, por motivos bem identificados, entendeu o legislador ser conveniente levar aqueles dispositivos para a Constituição, embora lá não necessitassem constar. Ultrapassada aquela circunstância histórica, desconstitucionalizou-se o tema.  Tal não significa, porém, que tenha ficado “revogado o direito correspondente” (para usar a expressão de Pontes de Miranda), mas, simplesmente, que doravante será possível a supressão daqueles requisitos pelo legislador infraconstitucional, o que não seria viável sem a modificação ora operada no plano constitucional.
                          Revogação ocorreria se houvesse manifesta incompatibilidade entre o novo dispositivo constitucional e a legislação ordinária (arts. 1.571 a 1.580 do Código Civil). Não é o que ocorre, porém, como se verá.
                           Pertinente invocar aqui a Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 4.657/42) que, em seu art. 2º, § 1º, dispõe:
                                      A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria que tratava a lei anterior. 
                            Por dois modos, pois, pode uma lei (ou dispositivo legal) ser revogada pela legislação posterior: (a) de forma expressa ou (b) tácita. Esta última modalidade, a seu turno, desdobra-se em outras duas:  (b.1) incompatibilidade entre o dispositivo anterior e o novo e (b.2) quando o novo regramento regular inteiramente a matéria que tratava a lei anterior.
                           No caso em exame, não houve, por evidente, revogação expressa, nem inteira regulação da matéria tratada no Código Civil. Resta, portanto, verificar se há incompatibilidade manifesta entre ambos os regramentos. Vale aqui o alerta de Maria Helena Diniz[9]:
(...) havendo dúvida, dever-se-á entender que as leis “conflitantes” são compatíveis, uma vez que a revogação tácita não se presume. A incompatibilidade deverá ser formal, de tal modo que a execução da lei nova seja impossível sem destruir a antiga.[10] (SEM GRIFO NO ORIGINAL)
                          Na mesma linha, com invejável clareza, complementa Eduardo Espínola[11]:
Os comentadores acentuam que, inquestionavelmente, se trata de uma incompatilidade formal, absoluta, de uma impossibilidade de aplicar, contemporaneamente, a uma relação jurídica, a lei antiga e a nova(SEM GRIFO NO ORIGINAL)
                                  Ora, com a maior reverência a respeitáveis (embora, a meu sentir, apressadas) opiniões em contrário, no caso não se flagra manifesta incompatibilidade entre a atual redação do § 6º do art. 226 da Constituição Federal e o Código Civil, na parte que disciplina os requisitos para obtenção do divórcio e da separação (judicial e extrajudicial).
                                  Isso porque a nova regra constitucional limita-se a declarar (simplesmente repetindo, aliás, o que já constava no § 1º do art. 1.571 do Código Civil) que “o casamento pode ser dissolvido pelo divórcio”, nada dispondo quanto à dispensa, ou não, de qualquer outro requisito.  Isso não impede, por evidente, que a lei ordinária estabeleça os requisitos para a obtenção do divórcio!  Não há, para usar a feliz expressão de Espínola, qualquer “impossibilidade de aplicar, contemporaneamente, a uma relação jurídica, a lei antiga e a nova”.
                           Diferente seria se o § 6º do art. 226 da CF contivesse a seguinte redação (ou assemelhada): 
Art. 226. (...)
(...)
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, independentemente de qualquer requisito.
                                Por fim, aqueles que sustentam ter sido revogada, no ponto, a legislação infraconstitucional trazem o argumento da “vontade do legislador”, que seria, como se vê na Exposição de Motivos do Projeto que deu origem à EC 66, direcionada à extinção dos requisitos temporais do divórcio e à abolição da figura da separação judicial.  Embora reconheça ter sido essa, com efeito, a intenção dos autores do Projeto, é preciso ter presente que o critério exclusivamente subjetivista de interpretação (mormente quando não encontra respaldo na linguagem da norma, como no caso) representa fator de insegurança jurídica. Como assinala, com ênfase, Adelino Augusto Pinheiro Pires[12]:
Falar, no entanto, em interpretação conforme a vontade da norma, quando uma norma constitucional não tem desígnio em si mesma, é um disparate, convenhamos. Falar, então, em interpretar a norma constitucional segundo a vontade do legislador, mostra-se com mais razão um contrassenso. A norma constitucional diz o que quer dizer; quanto ao que não quer dizer, se cala ("lex quod volet dixit; quod non volet tacet"). (SEM GRIFO NO ORIGINAL)
                       Nesse mesmo sentido é o que afirma Gilberto Schäfer, em seu já citado artigo:
É certo que já se amainaram as críticas ao processo de valorização da  gênese legislativa, aí incluídos os chamados trabalhos parlamentares (travaux parlamentaires), mas não há a possibilidade de se ultrapassar os limites da linguagem, sob pena de perder qualquer objetividade na interpretação.  E o perigo de não equilibrar subjetividade/objetividade é a possibilidade do arbítrio e da falta de controle e até mesmo em um excesso de voluntarismo que não pode mais ser aceito. É a linguagem do texto expresso na EC que deve nos dar a justa medida para a sua interpretação.(SEM GRIFO NO ORIGINAL)
                                    Em conclusão – embora admita que a linha de pensamento que sustento representa uma visão “politicamente incorreta”, em um tempo em que a versão midiática, até do direito, tende a preponderar – penso que, por não haver qualquer incompatibilidade entre o novo texto do § 6º do art. 226 da Constituição Federal e os dispositivos correspondentes do Código Civil, estes últimos subsistem em sua inteireza, até que sejam objeto de modificação por lei específica.
                           Fique claro, porém, que esta opinião não significa que me posicione ideologicamente contrário à evolução que se pretendeu com a Emenda Constitucional em foco, mas apenas que não aceito – só por ser favorável à tese – que sejam atropeladas regras comezinhas de interpretação do Direito.     










[1] EMENDA DO DIVÓRCIO: CEDO PARA COMEMORAR (http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=648 , consulta em 22.09.2010)
[2] SEPARAÇÃO ERA INSTITUTO ANACRÔNICO (http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=654)
[3] http://magrs.net/?p=13910, consulta em 22.09.2010
[4] http://magrs.net/?p=14064, consulta em 22.09.2010
[5] “O art. 144 da Constituição brasileira de 1934 correspondeu à resistência do catolicismo à dissolubilidade do vínculo conjugal. Não se pode dizer, portanto, (...) que o art. 144 não constituía direito diretamente aplicável, mas feixe de princípios normativos para o legislador: a lei que na vigência da Constituição permitisse o divórcio seria inconstitucional, e os juízes não a aplicariam” (Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. “Comentários à Constituição de 1967” – São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1968, Tomo VI, p. 305)
[6] Por ocasião dos debates que resultaram no texto da Constituição de 1934, a norma do parágrafo único do art. 144 foi objeto de muitas críticas, dentre as quais a que lhe dirigiu o Deputado Levi Carneiro, nos seguintes termos: “Não há, no entanto, dispositivo mais anódyno, mais ridículo, mais descabido que aquelle acima transcripto. É menos que uma dessas simples sugestões, ou recommendações, de que vae ficar cheia a nova Constituição, e que, ao menos em certos casos, se podem justificar. Não chega a tanto, porque manda que a lei civil faça o que ella já fez, e recomenda um detalhesinho miúdo de processo, que também várias leis já consagraram e se mostrou inefficiente para o fim em vista” . (Carneiro, Levi. “Pela Nova Constituição” – Rio de Janeiro: A. Coelho Branco Fº, 1936, p. 358) . 
                                    Apesar disso, a regra, proposta por Oswaldo Aranha, foi aprovada, com a seguinte justificativa de seu autor: “Ao elaborar o projecto, não quis referir os casos de annullação do casamento regulados pelo Código Civil. E não quis por que elles deram logar aos maiores escandalos, a factos verdadeiramente vergonhosos para a organização da família brasileira, cuja mulher, felizmente na opinião do ultimo escriptor que nos visitou e escreveu sobre nossas coisas, soffre a moléstia de ser honesta. De modo que, receiando que continuassem esses escândalos, quaes o de um juiz, numa cidade pequena, annullar casamentos com a maior desenvoltura, estabeleceu a regra de que haverá sempre appellação ex-officio das sentenças anulatórias de casamentos”. (Azevedo, José Afonso de Mendonça. “Elaborando a Constituição Nacional (Atas da Subcomissão elaboradora do anteprojeto 1932/1933 – Ed. fac-similar – Coleção História Constitucional Brasileira – Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial – 2004 – p. 703).
[7] Art 124 - A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado.

[8] Ob. Cit. – p. 306.
[9] Diniz, Maria Helena.  Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada – São Paulo: Saraiva – 2007, p. 72
[10] No mesmo sentido se manifesta Miguel Maria de Serpa Lopes: “Fôrça é notar que a revogação tácita ou indireta não se presume; para que uma lei nova se repute revogadora da anterior cumpre esbater-se uma incompatibilidade ou contrariedade formal e absoluta”. (Serpa Lopes, Miguel Maria de.  “Comentários à Lei de Introdução ao Código Civil”. São Paulo: Livraria Freitas Bastos S/A – 1959 - vol. I – p. 55)
[11] Espinola, Eduardo. “A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Comentada” . São Paulo: Livraria Editora Freitas Bastos S/A – 1943 – vol. I – p. 78.
[12] “A Inutilidade da Emenda Constitucional nº 66/2010”, in http://jus.uol.com.br/revista/texto/17355/a-inutilidade-da-emenda-constitucional-no-66-2010, acessado em 23.09.2010.

DOUTRINA - ANOTAÇÕES ACERCA DAS SEPARAÇÕES E DIVÓRCIOS EXTRAJUDICIAIS (Lei 11.441/07)




 Luiz Felipe Brasil Santos 

                             (publicado em março.2007) 


1.                     Na aparente singeleza de seus cinco artigos, a Lei n°11.441/07, em vigor desde 5 de janeiro do corrente, tem suscitado inúmeras indagações, especialmente no que se refere às separações e divórcios.

Insere-se esse diploma na concepção que visa eliminar a intervenção do Poder Judiciário em relações jurídicas de conteúdo exclusivamente patrimonial, entre pessoas maiores e capazes, e que, por isso, não carecem da tutela do Estado-Juiz para deliberar acerca de suas opções existenciais, resguardando-se essa função estatal apenas para aquelas situações conflitivas para cujo desate se torne indispensável um ato jurisdicional de poder.

Corresponde, por igual, à necessária racionalização da atividade jurisdicional, notoriamente congestionada. Nessa perspectiva, no entanto, extremamente reduzido será o impacto da nova lei.  Primeiro, porque a formalização das separações e divórcios pela via extrajudicial é uma mera faculdade das partes. Desse modo, permanecem abertas as portas do Poder Judiciário a quem desejar realizar o procedimento tradicional em juízo. Segundo, porque, dentro da massa de processos, as separações e divórcios consensuais representam um percentual muito reduzido. Tomando-se como referência o ano de 2005, no Estado do Rio Grande do Sul, ingressou no primeiro grau um total de 820.458 novos processos cíveis[1]. Destes, separações e divórcios consensuais somaram 12.665[2], o que significa apenas 1,54% do total de feitos cíveis ajuizados naquele ano. E nesse total estão abrangidos pleitos onde havia filhos menores (que são, aliás, a grande maioria), os quais continuarão necessariamente a ter andamento em juízo, conforme a nova lei. Desse modo, na melhor das hipóteses, o impacto da desjudicialização dos procedimentos acarretará uma redução de, no máximo, 0,5% sobre o total de processos cíveis ingressados.

2.                     No Estado do Rio Grande do Sul, a Corregedoria-Geral da Justiça regulamentou a matéria por meio do Provimento 04/2007, de 18 de janeiro último, que, introduzindo modificações na Consolidação Normativa Notarial e Registral (CNNR), tratou de orientar os Tabeliães acerca das providências necessárias à efetivação do comando legal.

3.                     Somente será possível o acesso à via extrajudicial para obter separações e divórcios quando houver consenso e o casal não possuir filhos menores ou incapazes, restringindo-se o pacto, desse modo, a cláusulas de conteúdo exclusivamente afeto a interesses patrimoniais (com exceção da disposição relativa ao uso do nome, que escapa a essa categoria). Filhos emancipados não constituem óbice a que se promova o distrato por essa forma.

4.                     Dispensada a presença do magistrado e, conseqüentemente, a intervenção do Ministério Público, redobra a responsabilidade do advogado, cuja atuação na formalização do ajuste é indispensável (art. 1.124-A, § 2°, do CPC, na redação da Lei nº 11.441/07) e decisiva. Compete-lhe esclarecer minuciosamente o casal acerca das cláusulas do pacto e suas repercussões futuras, especificamente no que se refere à partilha de bens, aos alimentos e ao uso do nome. Dada a relevância dessas questões, devem ser evitados ajustes precipitados, muitas vezes fruto da intensa emotividade que emana da ruína das relações conjugais. A reflexão objetiva, tanto quanto possível desapaixonada – o que só se obtém com a maturação do tempo –, é sempre a melhor conselheira. Ajustes mal finalizados, que depois se constata não corresponderem à real intenção dos contratantes, podem ser desastrosos, só restando posteriormente a via judicial para sua desconstituição, o que será viável apenas quando demonstrado vício de vontade.

5.                     Como ocorre em juízo, o casal poderá estar representado por um único advogado, ou cada um deles contratar o seu profissional, tudo dependendo, é claro, do grau de confiança recíproca. Na escritura deverá constar a qualificação completa do profissional, com menção do respectivo número de inscrição na OAB. Não há necessidade de apresentar procuração em instrumento apartado, podendo o mandato ser outorgado na própria escritura de separação ou divórcio.

6.                     Embora a lei não seja expressa, é evidente que tanto o divórcio direto como aquele por conversão poderão ser realizados pela forma nela prevista. É que não há razão alguma para restringir esse procedimento simplificado apenas ao divórcio direto, sobretudo considerando que o divórcio por conversão em geral é bastante mais singelo, pois as cláusulas do ajuste já foram pactuadas ao ensejo da separação. O fato de a separação ter sido feita em juízo não impede que a conversão em divórcio o seja na forma extrajudicial. O contrário também é verdadeiro, até porque eventual consenso que tenha permitido a separação pela via extrajudicial pode vir a se romper no momento da conversão em divórcio, impondo que esta se faça mediante processo.

7.                     Em se tratando de divórcio direto, a prova da separação de fato por período superior a dois anos (exigência do § 2° do art. 1.580 do Código Civil) será feita pelo depoimento de uma testemunha, cuja declaração, qualificação e assinatura devem constar na escritura. Essa prova poderá ser produzida também por declaração escrita de uma testemunha, com firma reconhecida por autenticidade (art. 619-F da CNNR, na redação do Provimento 04/07-CGJ), ficando arquivada em cartório. Resta afastada, portanto, a possibilidade de fazer prova da separação de fato exclusivamente mediante prova documental, cuja avaliação seria, no caso, subjetiva e, por isso, não deve ficar a cargo do Tabelião.

8.                     Embora haja quem sustente que os contratantes podem se fazer representar por procurador[3], dispensando-se sua presença ao ato, não comungamos desse entendimento. E isso pelas mesmas razões que levaram o legislador do CPC (art. 1.122, “caput” e § 1°) a, no processo judicial, exigir a audiência de ratificação do pedido, com a presença do casal desavindo perante o magistrado, oportunidade em que ambos devem ser ouvidos e manifestar sua intenção de não mais manter a sociedade conjugal e/ou o vínculo matrimonial, quando, somente então, poderá ser homologado o pleito. Ora, se no processo judicial, onde maiores são as cautelas, com a presença do magistrado e do Ministério Público, o comparecimento pessoal das partes é indispensável, não se ostenta prudente dispensá-lo justamente quando revestida de menor fiscalização a formalização do acordo.

Em boa hora, o Provimento 04/07 da Corregedoria-Geral da Justiça do Rio Grande do Sul adotou essa cautela em mais de um dispositivo. Assim, o art. 619-C, § 4°, da CNNR, introduzido por aquele ato, dispõe que os cônjuges comparecerão pessoalmente para a lavratura do ato notarial, inadmitida a sua representação por procuração. Mais adiante, o § 5° determina que a falta de anuência de uma das partes quanto a qualquer das cláusulas apresentadas, ou a recusa de alguma pretensão que objetivava ver consignada, impedirá a realização do ato, devendo, então, ser informada pelo tabelião a possibilidade de ingresso na via judicial. Por fim, o parágrafo único do art. 619-E, estabelece que havendo fundados indícios de prejuízo a um dos cônjuges ou existindo dúvida sobre a declaração de vontade, impõe-se a negativa à lavratura da escritura pública de separação ou divórcio (grifo meu). Ora, somente com a presença do casal é que o tabelião poderá conferir a anuência plena, esclarecida e consciente com todas as cláusulas do pacto (cujos termos e conseqüências deverão ser explicados em todos os seus detalhes, no ato) e verificada eventual dúvida quanto à declaração de vontade.
9.                     Embora silente a lei, é razoável concluir que também por escritura pública poderá se dar o restabelecimento da sociedade conjugal, apesar de o art. 1.577 do Código Civil fazer menção a que esta providência deva ser realizada por ato regular em juízo. É que aqui se reclama uma interpretação sistemática, partindo-se da constatação de que quando o Código Civil entrou em vigor não havia previsão de separação extrajudicial. Logo, sendo exclusivamente judicial – como era então – a dissolução da sociedade conjugal, por simetria assim deveria ser seu restabelecimento. Agora, com a desjudicialização da separação consensual, nada há que justifique manter-se na órbita do Judiciário o restabelecimento da sociedade conjugal. E para tanto não importa que a separação tenha sido feita em juízo, até mesmo litigiosamente. Em qualquer hipótese, o restabelecimento formal da vida em comum poderá ocorrer por escritura pública. A normativa administrativa em nosso Estado (art. 619-H da CNNR, na redação do Provimento 04/07) consagra esse entendimento.

Mesmo na ausência de previsão, por igual, tem-se como admissível que a reconciliação se dê mediante procuração, por instrumento público e com poderes especiais. Não há aí nenhum inconveniente, sendo certo que a união será refeita nos mesmos termos em que fora originalmente constituída, ressalvados, é claro, os direitos de terceiros (art. 1.577, parágrafo único, do CC).

Em uma única hipótese não será viável que esse procedimento se dê por escritura pública. É que, usando da faculdade que lhes é agora concedida pelo cânone civilista, o casal poderá requerer, cumulativamente a esse pleito, a modificação do regime matrimonial de bens. Nesse caso, dada a relevância das questões envolvidas, imperioso que o pedido seja deduzido na via judicial, como determina o § 2º do art. 1.639 do CC .

10.                   Não é demasia registrar que os pactos decorrentes da dissolução de uniões estáveis também possam ser realizados por escritura pública, dispensada homologação judicial. Isso, por sinal, já vinha sendo realizado antes mesmo da vigência da lei em exame. Com efeito, nenhuma razão há para que se exija maior formalidade para estabelecer os efeitos do desfazimento de uma relação que, por natureza, é informal.

Saliente-se que esse pacto, em si, não dissolve a união estável, pois esta, sendo um fato, se desconstitui da mesma forma como se constitui, ou seja: pelo evento fático da separação do casal. A escritura pública, assim como não é hábil para constituir a união estável, não o é para desconstituí-la, limitando-se seu objeto apenas a regrar as conseqüências do desfazimento operado no plano fenomênico.

11.                   Do mesmo modo, também cabe realizar separação de corpos na forma extrajudicial. Interesse para tanto poderá haver, pois o casal, desejando fazer cessar formalmente a convivência, e não contando com o lapso temporal necessário para obter a separação consensual (mais de um ano de casamento – art. 1.574 do CC), poderá, a qualquer tempo, regularizar a situação no plano jurídico por meio da separação de corpos, que, dispensando o dever de coabitação, (a) elimina qualquer possibilidade de posterior alegação de abandono do lar, (b) passa a contar tempo tanto para eventual separação judicial litigiosa (art. 1.572, parágrafo único, CC), divórcio direto (art. 1.580, § 2°) ou mesmo indireto (art. 1.580, “caput”, do CC), (c) faz cessar a comunicação dos bens adquiridos a partir daí e (d) rompe com a presunção pater est.

12.                   Para a prática do ato notarial pode ser livremente escolhido qualquer tabelionato de notas, conforme dispõe o art. 8° da Lei n° 8.935/94, não se submetendo às regras de competência do Código de Processo Civil (art. 100, I, do CPC). Por sinal, assim é também no caso de procedimento judicial de separação ou divórcio consensuais, pois, em se tratando de regra de competência relativa, facultado dela abrir mão por acordo.

13.                   Expressa é a lei (redação do § 3º do art. 1.124-A) quanto ao fato de que, para a obtenção da gratuidade, basta a declaração de pobreza, dispensando-se qualquer prova, mesmo se o casal estiver representado por advogado constituído. Nesse ponto, é certo, poderá haver abusos. Em tais casos, ao titular do cartório que se sentir lesado – embora não possa se recusar à prática do ato – sempre restará a possibilidade de ingressar em juízo com eventual pleito de cobrança, cabendo-lhe então provar que a declaração de pobreza não corresponde à realidade.

14.                   As cláusulas do acordo devem necessariamente referir o que ficar deliberado acerca da partilha, dos alimentos (mesmo que para dispensá-los) e do uso do nome (caso ao ensejo do casamento tenha havido a adoção do sobrenome do outro).

E se o casal pretender a separação ou o divórcio sem obter acordo quanto à partilha ou mesmo aos alimentos? Será possível lavrar escritura apenas para dissolver a sociedade conjugal ou extinguir o vínculo matrimonial, ressalvando que as questões acerca das quais não há consenso ficam relegadas para serem solvidas judicialmente, em oportuna ação de partilha e/ou de alimentos ?

A Lei 11.441/07 silencia acerca dessa questão. O Provimento 04/07-CGJ, por sua vez, na redação que dá ao art. 619-C da CNNR, permite dupla interpretação. Isso porque, ao dispor que na escritura constarão as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns e à pensão alimentícia, à primeira vista parece impor o regramento dessas matérias. Assim não entendemos, porém. Ocorre que, como é cediço, dispor sobre alimentos não significa fixá-los. Poderá haver dispensa, renúncia (apesar do controvertido artigo 1.707 do CC) ou mesmo ressalva de que o tema será dirimido litigiosamente em juízo. O mesmo se diga quanto à partilha de bens, a qual, frise-se, não é indispensável no divórcio (art. 1.581 do CC) nem, muito menos, na separação (apesar da má redação do art. 1.575 do CC). Obrigatória é a menção ao que restar deliberado nessa matéria, o que pode simplesmente consistir em relegá-la para posterior solução (consensual ou litigiosa, judicial ou não). No entanto, dispensada a partilha, imprescindível é, ao menos, a descrição dos bens do casal (art. 1.121, inc. I, do CPC, e respectivo § 1°). Isso porque, caso não haja consenso sequer acerca dos bens partilháveis, retira-se a possibilidade da via amigável para o distrato conjugal.  Se assim é quando se trata de pedido em juízo, não há razão para que seja diferente em se tratando de solução extrajudicial.

15.                   Embora não seja possível realizar pela via extrajudicial as separações ou divórcios quando o casal possuir filhos menores ou incapazes, é certo que poderá, no momento desse acordo, haver estipulação de alimentos em prol de filhos maiores, pois, como é bem sabido, a maioridade, por si, não faz cessar a obrigação alimentar dos genitores, cujo fundamento simplesmente se desloca do dever de sustento (art. 1.566, inc. IV, do CC) para a obrigação genérica entre parentes (art. 1.694 do CC). Além disso, devido às notórias dificuldades do mercado de trabalho e à crescente qualificação profissional exigida para quem nele pretende ingressar, cada vez se torna mais tardia a independência financeira dos filhos.

Nessa hipótese, tem-se situação similar à estipulação em favor de terceiro (arts. 436/438 do CC), civilmente capaz, sendo recomendável contar com a anuência deste, que deve constar como interveniente na escritura pública. Caso isso não ocorra, o ajuste não poderá ser oposto ao beneficiário, a quem restará sempre aberta a possibilidade de formular demanda alimentar em juízo, desconsiderando por completo o que restou ajustado no acordo entre seus pais, do qual não participou. De observar que essa demanda será mediante uma ação de alimentos, e não revisional, pois para esta última é indispensável comprovar a modificação no equilíbrio do binômio alimentar, o que é inteiramente dispensável na primeira, que se satisfaz com a prova da possibilidade e da necessidade.

16.                   Questão externa à lei em exame é a que diz com a possibilidade ou não de executar coercitivamente os alimentos fixados mediante escritura pública. Isso porque o art. 733 do CPC, ao regrar essa modalidade executória, a restringe à execução de títulos judiciais. E nesse sentido têm se manifestado, de forma quase unânime, doutrina e jurisprudência.

Embora a Lei 11.441/07 não tenha feito qualquer menção ao tema, pensamos que, diante da nova realidade, é necessário repensar a matéria, em uma perspectiva sistemática. Quando da entrada em vigor do Código de Processo Civil não se cogitava de o Estado-Juiz deixar de intervir no momento da dissolução da sociedade conjugal ou do vínculo matrimonial, ocasião na qual muitas vezes são feitas estipulações alimentares. Ora, se ficar mantida a restrição da execução coercitiva exclusivamente aos alimentos fixados em juízo, em muito restará desestimulada a pactuação extrajudicial que agora se busca incentivar, o que configura uma contradição insuperável, que não deve sobreviver no âmago de um mesmo ordenamento jurídico. Por isso entendemos que doravante deve ser admitida a execução coercitiva aparelhada também em pacto formalizado por instrumento público.

17.                   Algumas dificuldades podem se apresentar quando se cogita de dar efetividade ao acordo, no que diz respeito à partilha e alimentos.

Quando houver previsão de pagamento da verba alimentar mediante desconto em folha de pagamento ou outros rendimentos do devedor, deverá constar na escritura a obrigação por este assumida de providenciar na devida autorização para desconto junto à fonte pagadora (que deverá ser indicada), em determinado prazo. Se isso não ocorrer, restará ao credor ingressar em juízo com pedido de execução, na forma do art. 735 do CPC, combinado com os artigos 16 e 17 da Lei 5.478/68.

Do mesmo modo, em se tratando de partilha de veículos ou valores monetários disponíveis em estabelecimentos bancários, se não houver a necessária iniciativa daquele em cujo nome se encontra esse patrimônio, restará à parte lesada postular em juízo o cumprimento da obrigação assumida.

No caso de imóveis, nenhum problema haverá, aplicando-se analogicamente o art. 616 da CNNR, que, ao tratar da partilha “causa mortis”,dispõe:
A escritura pública de partilha constituirá título hábil para o registro imobiliário, desde que todas as partes interessadas estejam assistidas por advogado comum ou advogado de cada uma delas, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.

18.                   Estas são algumas considerações preliminares acerca da nova lei, que, sem dúvida, apesar de alguns possíveis inconvenientes, representa um importante passo para modernizar e simplificar procedimentos de tanta relevância para o cotidiano de nossa população. A aplicação da lei – o “fazer-se norma”, na feliz expressão de LUIZ EDSON FACHIN – é que permitirá o aprofundamento das reflexões e a indicação de soluções para os problemas que forem surgindo.




[1] Relatório do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ano 2005, disponível em www.tj.rs.gov.br .
[2] Dados disponíveis em www.ibge.gov.br .
[3] Este é o entendimento de Paulo Luiz Neto Lobo, em artigo publicado no SITE do Conselho Nacional de Justiça (http://www.cnj.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=2724&Itemid=129), onde afirma: Qualquer dos cônjuges pode ser representado por procurador, com poderes específicos e bastantes, por instrumento público ou particular de procuração, porque não há vedação legal e é simétrico ao ato solene do casamento, que permite a representação convencional do nubente. Por outro lado, há a indispensável assistência e presença de seu advogado na lavratura da escritura, como garantia da defesa de seus interesses. 

DOUTRINA - REPRODUÇÃO ASSISTIDA E PATERNIDADE SOCIOAFETIVA

Luiz Felipe Brasil Santos  

(publicado em novembro.2004)


A paternidade socioafetiva – que prefiro denominar parentalidade socioafetiva, por eventualmente envolver também a relação com a mãe – e sua interface com as técnicas de reprodução assistida é, nos dias que correm, o tema mais atual, instigante e complexo do Direito de Família.

Técnicas de reprodução assistida constituem um gênero composto pelas seguintes espécies :
a)     inseminação artificial homóloga – ocorre com a utilização exclusiva de sêmen do marido ou do companheiro da mãe, com fecundação intra-corpórea;
b)     inseminação artificial heteróloga – tem lugar com utilização de sêmen de terceiro, que não o marido ou o companheiro da mãe, com fecundação também intra-corpórea;
c)    fecundação in vitro homóloga – a fecundação do óvulo se realiza em meio externo, no laboratório, exclusivamente com sêmen do marido ou do companheiro, transferindo-se posteriormente o embrião fecundado para o útero da mulher;
d)    fecundação in vitro com sêmen de terceiro dador – o óvulo é fecundado em meio externo (laboratório), com utilização de sêmen de dador anônimo, e logo transferido para o útero da mulher (que pode ter ou não um marido ou companheiro);
e)    fecundação in vitro com dação de óvulos – o sêmen pode ser do marido ou companheiro, ou de um dador anônimo; o fundamental nesta espécie é que o óvulo é também de outra mulher diversa daquela em quem se implanta depois da fecundação; a mulher, assim, dá à luz um ser que apenas gestou, mas não concebeu.  

Inúmeras são as questões que decorrem do emprego dessa tecnologia.  Sem a pretensão de esgotá-las, vale, a título meramente exemplificativo, relacionar algumas:  a) qual o tratamento jurídico que devem receber os gametas, os pré-embriões e os embriões humanos (?); b) quem pode ter acesso a essas técnicas de reprodução: apenas casais (?), mulheres sozinhas (?); c) em que limites deve ser admitida a fertilização assistida post mortem(?) d) quem é a mãe nos casos de “barriga de aluguel”(?); e) deve ser preservado o anonimato do dador do sêmen e/ou do óvulo (?); f) se garantido o anonimato, deve ser assegurado ao dador do sêmen e/ou do óvulo, por opção sua, buscar o reconhecimento do vínculo genético (?); g) como compatibilizar o anonimato do dador com o direito de personalidade do ser gerado ao conhecimento de sua origem (?).
Essas indagações não encontram ainda resposta satisfatória, sendo objeto de acérrimas polêmicas em todos os quadrantes. É que as discussões em nosso país avançam sobre terra de ninguém, tendo em vista não dispormos de legislação que regule a matéria, hoje ainda regrada exclusivamente pela normativa deontológica corporificada na Resolução nº 1.358, de 11 de novembro de 1992, do Conselho Federal de Medicina.

A utilização das técnicas de reprodução assistida, especialmente quando empregado material fecundante de terceiro (reprodução heteróloga), que não o marido ou companheiro da mãe, agudiza uma tradicional problemática do Direito de Família, representada pela indagação QUEM É O PAI ?

A definição da paternidade sempre foi para o Direito uma  questão tormentosa. É que, enquanto a maternidade resulta das evidências da gravidez e do parto –  eventos públicos – sobre a paternidade recaía até há pouco o manto da incerteza, pois a concepção, de regra, sempre foi um ato praticado privadamente.  Os romanos resumiam isso na conhecida máxima mater semper certa est, pater incertus

O Código Civil de 1916, ao tratar dos critérios de estabelecimento da filiação – na linha das codificações de inspiração romana –, como assinala Gustavo TEPEDINO([1]), optou por uma nítida lógica patrimonialista, fazendo com que a tutela dos filhos ficasse ligada à espécie de relacionamento mantido entre os pais.  Para o legislador de final do século XIX e princípio do século XX, acima dos interesses da prole e da própria família –  instituição social – impunha-se preservar o casamento – instituição jurídica. Assim, na perspectiva desse diploma, portador de plenos direitos era apenas o filho legítimo, concebido na constância do casamento dos pais, e que, por força de presunção pater is est quem justae nuptiae demonstrant juridicamente era considerado filho do marido da mãe.                                         
A presunção pater is est, de caráter quase absoluto ao início do século XX, tinha por escopo fazer prevalecer (em  nome da  “paz doméstica”, da moral então vigente, e do interesse patrimonial) o que Luiz Edson FACHIN ([2]) denominou de paternidade jurídica – porque fundada em uma ficção  acerca da origem biológica. Sobre essas bases assentou-se a primeira fase do direito da filiação.

É preciso frisar que – além das razões de ordem moral, de defesa da estabilidade familiar, e do interesse em assegurar a transmissão do patrimônio no âmbito da família, que então justificavam a predominância da presunção  pater is est – também, à época, os recursos tecnológicos não permitiam que se investigasse diretamente a verdade acerca da origem genética, concorrendo, assim, para que a verdade biológica acerca da paternidade  acabasse cedendo passo àquela estabelecida a partir de uma presunção, por meio da qual um fato conhecido (a coabitação conjugal, aliada ao dever de fidelidade) levava a deduzir que outro – a concepção de um filho –, em torno do qual não se podia ter conhecimento direto, fosse verdadeiro.

O avanço científico, porém,  especialmente  na área  genética, com  a introdução  do método  do  DNA, que permite determinar  a paternidade com certeza  praticamente  absoluta,  tornou  flagrantemente obsoleto  todo  esse arcabouço  jurídico.  As  possibilidades que tal tecnologia oferece simplesmente relegaram definitivamente para o museu da história  a já lembrada máxima  mater semper certa est, pater incertus, pois a  paternidade já não mais se reveste de incerteza, e, em contrapartida, a maternidade, antes tão garantida pelas evidências fisiológicas, hoje já não mais se tem por segura, ante a evolução nas técnicas de reprodução assistida, em especial com a chamada “barriga de aluguel”.

A possibilidade proporcionada pela ciência de decifrar o segredo das origens da pessoa humana baliza o que Jose Castan TOBEÑAS([3]) denomina de “primeira revolução biológica”, que está na base do grande movimento de reforma da filiação, desenvolvido nos países ocidentais na segunda metade do século XX.

Essa etapa, que se pode definir como sendo segunda fase do direito da filiação,  caracteriza-se pela permissão, modo irrestrito, para investigar a  paternidade  biológica, em detrimento da exclusiva verdade jurídica, resultante do sistema de presunções .  Isso resultou no Brasil  consolidado sobretudo nos arts. 26 e 27, da Lei 8.069/90, assim como na Lei 8.560/92.

Entretanto, a extraordinária dinâmica das relações familiares em nosso tempo – com a valorização do indivíduo, em detrimento da família como instituição, somada à vertiginosa revolução científica – conduziu ao que João Baptista VILLELA([4]) denomina de “desbiologização da paternidade” , que constitui a terceira fase do direito da filiação. Sob esse enfoque a verdadeira paternidade é a que se funda no afeto – paternidade socioafetiva ou sociológica, que se revela pela “posse do estado de filho” – podendo ou não coincidir com a paternidade biológica ou a jurídica.  Como assinala, em extraordinária síntese, esse ilustre doutrinador, pioneiro em nosso país na abordagem do tema:

Se se prestar atenta escuta às pulsações mais profundas da longa tradição cultural da humanidade, não será difícil identificar uma persistente intuição que associa a paternidade antes com o serviço que com a procriação. Ou seja: ser pai ou ser mãe não está tanto no fato de gerar quanto na circunstância de amar e servir

Na atualidade, portanto, a parentalidade pode ser vista sob três perspectivas: a jurídica, a biológica e a socioafetiva. De regra, essas três faces são materializadas em uma mesma pessoa, que é, ao mesmo tempo, o pai jurídico, biológico e socioafetivo. Há casos, porém, em que se dá a dissociação, incorporando-se cada uma delas em dois ou três indivíduos diversos, que serão um deles o pai jurídico, outro o pai biológico (ou genitor) e um terceiro o pai socioafetivo.

Para tal fenômeno em muito contribuiu a dissociação  entre sexualidade e reprodução, em decorrência do emprego cada vez mais ampliado das tecnologias reprodutivas. Veja-se que inicialmente a pílula anticoncepcional havia afastado o ato sexual de sua necessária conseqüência reprodutiva.  Posteriormente, com a introdução das técnicas de reprodução assistida, deu-se mais um passo, desligando-se, por sua vez, a reprodução de seu pressuposto, o ato sexual. Além disso, ficou profundamente alterada a noção de ato procriador, antes situado na mais estrita intimidade do casal, agora podendo resultar de um ato público, com intervenção de terceiros, cientificamente comprovável.

Essa evolução tem levado muitos juristas a tratar da filiação fora de um suporte meramente biológico, em favor de uma paternidade de intenção, constituída a partir da vontade.  Como assinala Guilherme Calmon NOGUEIRA DA GAMA([5]):
É fundamental considerar, no âmbito da parentalidade-filiação decorrente das técnicas de reprodução assistida, a vontade como elemento essencial para o fim de se admitir o estabelecimento do vínculo de paternidade-filiação e de maternidade-filiação.                                

Nessa linha, nosso atual Código Civil, na disposição pioneira do art. 1.593, de conteúdo extremamente aberto, define como parentesco civil a relação que decorre de “outra origem” que não a consangüinidade (geradora esta do parentesco natural).  

Sinale-se que na redação original do Projeto do Código constava como parentesco civil apenas aquele resultante da adoção, ignorando por completo a situação daqueles filhos havidos por inseminação artificial heteróloga (art. 1.597, V), que, a permanecer aquele texto, não teriam relação de parentesco possivelmente nem sequer com o marido da mãe (e com os parentes deste), o que configuraria evidente absurdo. Na etapa final de tramitação do Projeto, já na Comissão de Redação é que, resultante de proposta encaminhada pelo IBDFAM, foi modificada a parte final do dispositivo, sendo trocada a palavra “adoção” pela expressão “outra origem”. Na justificativa então apresentada consignou-se que
a proposta de retificação do texto do dispositivo  substituindo “adoção” por  “outra origem” leva em conta a necessidade de não se excluírem outras fontes das relações de parentesco como, por exemplo, aquelas relativas à utilização de técnicas de reprodução assistida com a utilização de material genético de terceiro. Por força do disposto no art. 227, § 6º, da Constituição Federal, bem como do reconhecimento da presunção de paternidade relativamente ao marido que consente que sua esposa seja inseminada artificialmente com sêmen de terceiro (o doador), logicamente que a criança que venha a nascer, fruto de uma das técnicas de reprodução assistida, terá vínculos de parentesco não apenas com os pais, mas também com os parentes em linha reta e em linha colateral deles.
Ademais, a expressão proposta enseja o reconhecimento jurídico da paternidade socioafetiva, fonte das mais saudáveis relações familiares.
Portanto, a referência apenas à adoção é restritiva e exclui outras fontes do parentesco civil, motivo pelo qual deve ser retificada a redação do  dispositivo.

A expressão “outra origem” engloba, portanto,  a filiação não-decorrente da consangüinidade, que se pode classificar em: a) filiação adotiva; b) filiação havida por reprodução artificial heteróloga; c) filiação socioafetiva (resultante da posse de estado de filho).  Nesse sentido é o enunciado nº 103, aprovado por ocasião da I JORNADA DE DIREITO CIVIL, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, em setembro de 2002, que, na exegese do art. 1.593, afirma:
O Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo assim a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse de estado de filho.

Enquanto a filiação consangüínea (onde estão incluídos os filhos havidos por reprodução artificial homóloga) tem como origem e fundamento a concepção (intencional ou fortuita), a filiação civil (onde se inclui a resultante de reprodução artificial heteróloga) resulta, como antes assinalado, da vontade, inspirada pelo afeto.

Reconhecendo esse fenômeno, o Enunciado nº 104 do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, aprovado por ocasião da mesma Jornada, afirma:
No âmbito das técnicas de reprodução assistida envolvendo o emprego de material fecundante de terceiros, o pressuposto fático da relação sexual é substituído pela vontade (ou, eventualmente, pelo risco da situação jurídica matrimonial) juridicamente qualificada, gerando presunção absoluta ou relativa de paternidade no que tange ao marido da mãe da criança concebida, dependendo de manifestação expressa (ou implícita) de vontade no curso do casamento.  

Assim, tendo em mira que na reprodução artificial homóloga há perfeita coincidência entre a verdade juridicamente estabelecida e a verdade biológica, é no âmbito da reprodução artificial heteróloga – geradora, como se viu, de uma das formas de parentesco civil – que se põem as maiores indagações.

A primeira delas diz respeito a se essa paternidade pode ser atribuída ao marido que prestou ou não o consentimento.  Quanto a esse ponto, nosso sistema legal oferece agora resposta positiva, no inc. V do art. 1.597, que estabelece a presunção de que o filho havido nessas condições é filho do marido.

A segunda trata da possibilidade de o marido, que havia prestado o consentimento para a inseminação, posteriormente ingressar com ação negatória, de desconhecimento da paternidade.  A resposta aqui tem sido, em geral negativa. Assim, em havendo a prévia autorização, de que fala o inc. V do art. 1.597 –  com a voluntária adesão do marido ao “projeto reprodutivo” ou ao também chamado “projeto parental” – a presunção de paternidade se torna absoluta, inadmitindo contestação posterior por parte dele.  Haverá, no caso, carência de ação, como, aliás, está expressamente previsto na legislação portuguesa, cujo artigo 1.839,3, veda a “impugnação de paternidade com fundamento em inseminação artificial ao cônjuge que nela consentiu”. Tal regra, por sinal, consta na legislação de todos os paises que já regulamentaram a inseminação artificial heteróloga. No entanto, se não houver a concordância prévia e antecipada, incidirá a presunção pater is est, desde que concebida a criança na constância do casamento (art. 1.597, incs. I e II), porém em caráter relativo, admitindo, assim, a contestação da paternidade por parte do presumido genitor.

A terceira versa a possibilidade ou não de ser buscado o reconhecimento de paternidade por parte do filho junto ao dador do sêmen, ou, ao contrário, se este pode procurar a declaração de paternidade.  Aqui, em geral, tem sido destacada a relevância em manter incógnito o dador do material fecundante, sob pena de inviabilizar a própria utilização da técnica, por absoluta ausência de interessados na doação. Entretanto, a isso se contrapõe, em geral, o direito de personalidade do ser gerado ao conhecimento de sua ancestralidade. Da ponderação desses critérios, diversas respostas têm sido encontradas na doutrina, predominando aquela que recomenda a manutenção do anonimato do dador, com preservação, no entanto, nos bancos de sêmen, dos seus dados genéticos.

Veja-se que, enquanto nosso Código Civil trata no art. 1.597 do emprego das tecnologias reprodutivas no âmbito do casamento, deixa sem regramento a situação dos companheiros. Ocorre que na relação de companheirismo não vige a presunção pater is est, pois, diferentemente do casamento (de predominante natureza contratual), a união estável é fato.  Assim, em ocorrendo reprodução heteróloga na constância da união estável, não há que se falar em presunção sequer relativa de paternidade.  Logo, o reconhecimento da paternidade somente poderá decorrer de um ato voluntário do companheiro da mãe, no assento de nascimento, ou posteriormente.

Se isso não ocorrer, entretanto, resta saber se haverá modo de obter o reconhecimento forçado, e qual a base legal para a eventual procedência da demanda, pois vínculo genético evidentemente não haverá.  É preciso ter presente aí que, vivendo o casal em união estável, será exigida a autorização do companheiro, por força do que dispõe a Resolução 1.358 do Conselho Federal de Medicina.  Porém, caberá estabelecer um vínculo jurídico de paternidade exclusivamente com fundamento nessa manifestação prévia de vontade, não ratificada posteriormente pelo reconhecimento voluntário ? Poder-se-á afirmar que sim, com base na analogia do que ocorre com o casamento (embora aqui não se beneficie o filho da presunção pater est), pois, na medida em que houve a concordância prévia, ocorreu a adesão ao “projeto parental”, decisivo, no caso, para a definição da paternidade.

Em suma – e diante da imensidão do tema, apenas esboçado aqui a vôo de pássaro, dada a exigüidade do tempo –  a ERA DOS PRINCÍPIOS, inaugurada em finais do século XX,   caracteriza-se, no campo do Direito de Família, pelo tríptico constituído (1) pelo princípio da dignidade da pessoa humana, (2) pelo princípio da proteção integral à criança e ao adolescente e (3) pelo princípio da proteção especial à família, os quais conduzem ao reconhecimento do AFETO como valor juridicamente relevante na família eudemonista, vista agora como instrumento de realização de seus componentes, e não mais como unidade de produção, reprodução e transmissão de patrimônio.  Na filiação isso se reflete na preponderância da vontade (inspirada pela relação afetiva), e não mais da biologia, como a mais autêntica fonte do vínculo paterno-filial.                                              

Referências

FACHIN, Luiz Edson. Estabelecimento da filiação e paternidade presumida. Porto Alegre: Fabris, 1992.

GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

TEPEDINO, Gustavo. A disciplina jurídica da filiação na perspectiva civil-constitucional. Temas de direito civil. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

TOBEÑAS, Jose Castan. Derecho civil español, comum y foral. t.5 (derecho de familia), v.2 (relaciones paterno-filiales y tutelares). 10. ed. Madrid: Reus, 1995. 

VILLELA, João Baptista. Desbiologização da paternidade. Revista Forense. ano 76, v. 271, p. 45-51. jul./set. 1980. 




[1] TEPEDINO, Gustavo. A disciplina jurídica da filiação na perspectiva civil-constitucional. Temas de direito civil. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p.394.
[2] FACHIN, Luiz Edson. Estabelecimento da filiação e paternidade presumida. Porto Alegre: Fabris, 1992. p. 21.
[3] TOBEÑAS, Jose Castan. Derecho civil español, comum y foral. t.5 (derecho de familia), v.2 (relaciones paterno-filiales y tutelares). 10. ed. Madrid: Reus, 1995. p. 219.
[4] VILLELA, João Baptista. Desbiologização da paternidade. Revista Forense. ano 76, v. 271, p. 45-51. jul./set. 1980. p. 47.


[5] GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 693.