1. Introdução. 2. Conceito de inviabilidade fetal. 3. Anencefalia. 4. Autorizações judiciais para antecipação de parto. 5. O limite entre a vida e a morte. 6. Antecipação terapêutica de parto e aborto. 7. Perspectiva Bioética. 8. Perspectiva do Direito Penal. 9. Perspectiva do Direito Civil. 10. Perspectiva do Direito Constitucional. 11. Conclusões. 12. Referências bibliográficas.
(...) Severina sofre dores/ mas não cansa de sofrer/ e por ela ser muito forte/ com gosto de conhecer/ seu filhinho com defeito/ na hora que ele nascer/ E para a sala de parto/ ela é logo levada/ seu filho já nasce morto/ mas ela aliviada/ sua sogra ao seu lado/ já não lhe faltava nada/ No parto Severina sentiu/ grande desconforto/ oh que hora de aflição,/ meu Deus me dê conforto!/ meu filho, meu filho/ meu filhinho está morto/ Difícil pra Severina/ foi quando ela pode ver/ a cabeça do seu filho,/ outras mulheres a receber os seus bebês saudáveis,/ todas cheias de prazer (...).[1]
1. Introdução
O desenvolvimento das tecnologias de diagnóstico pré-natal, ocorrido especialmente a partir dos anos 80 do século passado, trouxe ao Direito e à Bioética paradoxais desafios.
Por um lado, possibilitou aos pais satisfazer a natural curiosidade acerca do sexo, tamanho e peso do feto, ensejando, em alguns casos, a correção, mediante cirurgia intra-uterina, de certos males que porventura o acometam.
De outro, ao permitir o diagnóstico antecipado das malformações fetais, gerou a necessidade de definir a conduta a adotar em tais situações, mormente naqueles casos em que há inviabilidade para a vida extra-uterina.
2. Conceito de inviabilidade fetal
Cumpre, de início, estabelecer o conceito de inviabilidade fetal.
Viável é o feto que apresenta capacidade de viver autonomamente.
Em contrapartida, inviável é aquele incapaz de sobreviver por si, fora do útero materno. A inviabilidade pode decorrer de formação incompleta (imaturidade) ou deficiente (malformação).
Em qualquer caso, a sobrevida após o nascimento dependerá do suporte tecnológico disponível na ocasião.
Com a evolução da tecnologia, ocorrida especialmente a partir da segunda metade do século XX, modificou-se sensivelmente a avaliação do momento a partir do qual um feto, em razão do estágio de maturidade em que se encontra, torna-se viável. Há cerca de 20 anos só era assim considerado após completar 28 semanas. Nos dias de hoje, 24 semanas, ou menos, já são suficientes. Há 10 anos, o feto deveria ter pelo menos 1 kg para ser tido como viável. Na atualidade, desde que assistidas de modo adequado, sobrevivem crianças de até 500 gramas.
A viabilidade nesses casos, frise-se, diz respeito ao grau de maturação do feto.
O feto que padece de anencefalia, ou de outras malformações igualmente graves, porém, é intrinsecamente inviável, independentemente do tempo de gestação, em virtude de ser portador de uma anomalia neurológica enquadrável como morte neocortical.
Além da anencefalia, diversas são as possíveis malformações que geram a incompatibilidade do feto com a vida. Dentre as principais, alinham-se: espinha bífida, exencefalia, iniencefalia, encefalocele, agenesia renal bilateral (ausência de dois rins), agenesia pancreátrica (ausência do pâncreas).
3. Anencefalia
De acordo com a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO)[2], a anencefalia é assim definida:
(...) malformação congênita caracterizada pela ausência total ou parcial do encéfalo e da calota craniana, proveniente de defeito de fechamento do tubo neural durante a formação embrionária, entre os dias 23 e 28 da gestação. Ocorre com maior freqüência em fetos femininos, pois, parece estar ligada ao cromossomo X. (...) A anomalia pode ser diagnosticada, com muita precisão, a partir de 12 semanas de gestação, através de exame ultra-sonográfico, quando já é possível a visualização do segmento cefálico fetal. (...) Outras malformações freqüentemente associadas à anencefalia são as cardiopatias congênitas e as alterações do sistema gênito-urinário fetal.
São suas principais características: a. inexistência de uma grande parte do cérebro; b. falta da pele que teria de cobrir o crânio na zona do cérebro anterior; c. ausência de hemisférios cerebrais; d. exposição exterior do tecido nervoso hemorrágico e fibrótico; e. falta do hipotálamo; f. desenvolvimento incompleto da hipófise e do crânio; g. anormalidades nas vértebras cervicais. Os olhos podem parecer, muitas vezes, normais, mas o nervo ótico, quando existente, não se estende até o cérebro. O feto anencefálico assemelha-se, em geral, a uma rã.
Apesar desse significativo conjunto de deficiências, possui o tronco cerebral, o que lhe possibilita apenas a preservação, mesmo efêmera, das funções vegetativas.
Embora variável conforme o país ou a região, estima-se, em geral, sua incidência em 1 caso para cada 1.600 nascidos vivos.
Quanto à causa dessa malformação, assim se manifesta a FEBRASGO[3]:
O risco de incidência de anencefalia aumenta 5% a cada gravidez subseqüente. Inclusive, mães diabéticas têm 6 vezes maior probabilidade de gerar filhos com este problema. Há também maior incidência de casos de anencefalia em mães muito jovens ou nas de idade avançada. Fatores nutricionais e ambientais podem influenciar indiretamente nesta malformação. Entre elas estão: exposição da mãe durante os primeiros dias de gestação a produtos químicos e solventes; irradiações; deficiência materna de ácido fólico; alcoolismo e tabagismo. Presume-se que a causa mais freqüente seja a deficiência de ácido fólico.
Em 65% das vezes o óbito se dá durante a gestação. Dos que nascem com vida, a maioria morre nos primeiros minutos ou horas. Apenas 25% apresentam sinais vitais na primeira semana após o parto. A morte é certa em 100% dos casos.
Embora tenha sido grande a evolução da medicina fetal no diagnóstico das malformações, o que permite sua constatação, em geral, a partir da 12ª semana de gestação, o mesmo não se deu com relação à possibilidade de tratamento, que é nula, especialmente no caso da anencefalia.
Esse paradoxo é responsável pelo grande drama dos pais (em especial da mãe), pois, diante da antecipada certeza de uma gravidez frustrada, nenhuma solução lhes resta; apenas a dramática opção entre levar a termo uma gravidez com a certeza da morte do feto (que, em verdade, já está morto, de acordo com o critério de morte neocortical, como se verá) ou antecipar o parto. Esse dilema envolve múltiplos questionamentos, que suscitam debate com repercussões no âmbito da Medicina, da Bioética, do Direito Penal, do Direito Civil e do Direito Constitucional.
4. Autorizações judiciais para antecipação de parto
O primeiro registro de uma autorização judicial, concedida no Brasil, para a realização de uma antecipação de parto por anomalia fetal (anencefalia, no caso) é de uma decisão originária da comarca de Rio Vermelho do Mato Grosso, no Mato Grosso do Sul, no ano de 1991.
Tinha início, então, a possibilidade de obter, por meio de alvará judicial, autorização para a interrupção da gestação em casos de malformações incompatíveis com a vida.
Atualmente, estima-se que mais de 3.000 autorizações judiciais para interrupção terapêutica de parto já tenham sido concedidas em nosso país. Nem todas se referem a fetos portadores de anencefalia, havendo casos de outras deficiências. A anencefalia, entretanto, é responsável por cerca de 60% desses casos.
É claro que esse número não representa todo o universo de casos acontecidos no Brasil nos últimos 14 anos. Ocorre que a autorização judicial, em geral, somente é buscada naquelas situações em que a antecipação do parto se dá dentro do sistema público de saúde. No entanto, para a classe social que pode buscar atendimento privado a solução quase nunca passa pelo Judiciário. Tem-se, aí, uma “cifra negra” de impossível avaliação.
5. O limite entre a vida e a morte
Para que se firme posição em torno desse delicado tema, é necessário preambularmente demarcar o limite entre VIDA e MORTE.
Como salienta Maria Celeste Cordeiro Leite Santos[4], “o conceito de morte é um conceito aberto, assim considerado porque seus elementos constitutivos são dados pela ciência médica, mas sua interpretação é jurídica”. Além disso, “a afirmação de que um indivíduo está vivo ou morto, depende do entendimento que se tenha desse conceito de morte. O conceito pode variar segundo diferentes culturas, religiões ou enfoques científicos.”
No mesmo sentido é o que afirma Alberto da Silva Franco[5], trazendo lição de Diego Gracia:
a morte é um fato cultural, humano. Tanto o critério da morte cardiopulmonar, como o da morte cerebral e o da morte cortical são construções culturais, mas que não se identificam diretamente com a morte natural. Não há morte natural. Toda a morte é cultural. E os critérios da morte também o são. É o homem quem diz o que é a vida e o que é a morte. E pode ir mudando sua definição desses termos com o transcurso do tempo. Dito de outro modo: o problema da morte é um tema sempre aberto. É inútil pretender encerrá-lo de uma vez por todas. A única coisa que se pode exigir é que explicitemos as razões das opções e que atuemos com suma prudência. Os critérios da morte podem, devem e têm de ser racionais e prudentes; não podem nunca aspirar que sejam certos.
Em 1968, a partir do Informe do Comitê da Escola de Medicina de Harvard, operou-se nessa área uma verdadeira revolução copernicana, deixando o coração de ser o órgão central da vida e a ausência de batimentos cardíacos a manifestação da morte. Seu lugar foi ocupado pelo cérebro, passando a morte a ser definida como a abolição total da função cerebral (whole brain criterion) que “importa a perda da função integradora do organismo como um todo, por parte do sistema nervoso central e inclui o comprometimento de todo o encéfalo, do tronco encefálico e de outras funções neocorticais”[6].
Porém, desde essa época (1968) até os tempos atuais, as novas tecnologias na área da biomedicina evidenciaram que o conceito de morte cerebral ou encefálica não é inteiramente seguro. Comprovaram-se casos em que, “com a manutenção da respiração mecânica em pacientes com diagnóstico firme de morte cerebral, persistiram sinais vitais (circulação, respiração, diurese, concepção materna, regulação hormonal) durante meses e até anos.” Desse modo, não mais se sustenta uma “justificação biológica da morte cerebral sob o argumento da perda irreversível da função cerebral completa”[7].
Desapareceu, então, a identificação da morte a partir da abolição total da função cerebral.
Esse fenômeno, na atualidade, serve apenas como um critério mediante o qual se admite a abstenção ou a interrupção de suporte vital para efeito de transplante. Não há ainda um exame que estabeleça uma nítida delimitação entre a vida e a morte neurológica (funções corticais e troncais). Por isso, os testes diagnósticos de morte cerebral tendem a ser cada vez mais clínicos do que instrumentais.
Na anencefalia, a inexistência das estruturas cerebrais (hemisférios e córtex), com a exclusiva presença do tronco cerebral, tem como conseqüência a total ausência das funções superiores do sistema nervoso central que possibilitam a existência da consciência e que implicam a cognição, a vida de relação, a comunicação, a afetividade, a emotividade. Em suma: a condição humana está inviabilizada. Restam preservadas exclusivamente – e mesmo assim de modo efêmero – as funções meramente vegetativas.
Configura-se, nesse quadro, a denominada morte neocortical (high brain criterion) que se contrapõe à abolição da função encefálica completa (whole brain criterion) que caracteriza a morte cerebral ou encefálica.
Nesse diapasão, destacam Carlos Gherardi e Isabel Kurlat[8]:
o critério de abolição da função cerebral completa, como indispensável para definir a morte, também pode questionar-se, pois a perda irreversível da consciência definiria mais absolutamente a natureza e condição humana do que a deficiência neurológica que regula a homeostase das funções vegetativas. Seguindo essa linha de pensamento, a teoria da identidade pessoal de Wikler recomenda defender o high brain criterion, considerando desse modo como espúria a justificativa biológica, pretendidamente inobjetável, da morte cerebral.
6. Antecipação terapêutica de parto e aborto
A expressão antecipação terapêutica de parto foi cunhada por Diaulas Costa Ribeiro e Débora Diniz[9], para tecnicamente diferenciar esse procedimento do aborto.
É que no aborto a conduta é direcionada a causar a morte do feto, de forma direta ou indireta. Na antecipação terapêutica de parto, não há nexo causal entre o procedimento e a morte do feto, que cessa suas funções biológicas em decorrência da patologia de que é portador, e não do fato de ter sido extraído do útero materno.
Essa distinção mais se justifica porque, como salientam Carlos Gherardi e Isabel Kurlat[10]:
É uma verdadeira incongruência obrigar a mulher a conceber em seu ventre um ser morto quando se concorda claramente que não se manterão os meios artificiais possíveis, embora efêmeros, para sustentar a vida da criança recém-nascida. Exige-se ao corpo da mãe dar o que o Estado não vai dar, através de equipamento médico, uma vez que não tem vida própria. (destaquei)
O caráter terapêutico da antecipação do parto de feto anencefálico decorre das possíveis complicações que poderão advir para a gestante, que, conforme a FEBRASGO[11], são as seguintes, dentre outras:
a) a manutenção da gestação de feto anencefálico tende a se prolongar além de 40 semanas;
b) ocorre um freqüente aumento no volume do líquido amniótico;
c) há a possibilidade de doença hipertensiva especifica da gestação (DHEG);
d) existem dificuldades obstétricas e complicações no desfecho do parto de anencéfalos de termo;
e) há necessidade de bloqueio de lactação;
f) o puerpério apresenta maior incidência de hemorragias por falta de contratilidade uterina;
g) há maior incidência de infecções pós-cirúrgicas devido às manobras obstetrícias do parto de termo.
Constatada a realidade da anencefalia na ótica médica e sua distinção em relação ao aborto, cumpre examinar agora a antecipação de parto na perspectiva da Bioética, do Direito Penal, do Direito Civil e do Direito Constitucional.
7. Perspectiva Bioética
A Bioética enfoca o tema na conformidade dos quatro princípios que a informam, a saber: autonomia, justiça, beneficência e não-maleficência.
É Stella Maris Martínez[12] que afirma:
Ao aceitar-se a manifestação da gestante, respeitou-se a autonomia de quem, livre e devidamente informada, deu a solução que considerava mais adequada para si mesma e para seu grupo familiar. O princípio de justiça alude à proporcionalidade das contribuições das partes à eqüidade. No caso, desafortunadamente, a ciência médica somente podia efetuar sua contribuição para aliviar o dano de que padecia a gestante, uma vez que nada podia fazer, nem nesse momento nem em qualquer outro, para otimizar as possibilidades de sobrevida do nasciturus. Sob este ângulo, o justo é dar ajuda à única pessoa que podia ser auxiliada. O princípio da beneficência versa sobre a realização de um bem. Adotar a solução reclamada por quem a pleiteia era autorizar um bem que não apenas atingia a quem solicitava, mas também a todo um grupo familiar que, com ela, padecia. Desconsiderar seu pedido entraria em colisão com o princípio da não-maleficência, já que, induvidosamente, lhe causaria um sensível prejuízo. A partir da ótica do anencéfalo, não se violava o princípio da não-maleficência na medida em que o adiantamento do parto não aumentava as possibilidades de um desenlace fatal que era uma conseqüência inevitável de sua gravíssima patologia.
Restam atendidos, dessa forma, os critérios bioéticos que justificam a intervenção direcionada à antecipação de parto do feto anencefálico.
8. Perspectiva do Direito Penal
O bem jurídico tutelado pelo tipo penal do aborto é a vida intra-uterina.
De todo o até aqui exposto, não obstante seja preciso reconhecer que na antecipação terapêutica de parto, assim como no aborto, também ocorre a interrupção do processo gestacional, é certo que nela não se integram os elementos que caracterizam o tipo do aborto, em especial a existência de vida humana intra-uterina. Trata-se, por isso, de conduta atípica.
Além disso, não há, como no aborto, o dolo direcionado a causar a morte do feto. Na antecipação terapêutica de parto, como já assinalado, essa conseqüência decorre não do procedimento cirúrgico, mas, sim, da inteira inviabilidade do feto para a vida extra-uterina. Como, com notável argúcia, observa Alberto Silva Franco[13], nestas condições “a intervenção realizada não foi a causa direta ou imediata da morte, mas mera ocasião para que esta se mostre visível a todos” (destaquei).
Releva, ainda, lembrar que dentre as hipóteses autorizadoras do aborto em nosso Código Penal está o chamado aborto ético, aquele no qual a gravidez resulta de estupro. Nesse caso, o ordenamento jurídico admite a preponderância da autodeterminação da mãe sobre a vida de um feto inteiramente viável. Não há porque deixar de admitir igual prevalência no caso de um feto que não apresente a mínima viabilidade para a vida fora do útero.
9. Perspectiva do Direito Civil
O Direito Civil utiliza o critério do nascimento com vida para se adquirir personalidade.
A definição do que é VIDA, entretanto, é tema que escapa ao âmbito estritamente jurídico. Como assinala Pontes de Miranda[14], “o problema de ter nascido com vida o ser humano é quaestio facti, que se há de resolver com os recursos da ciência do momento; não é quaestio juris.”
É certo que a doutrina civilista clássica segue a lição de Clóvis Beviláqua[15], no sentido de que “o ponto de vista do direito é social e não biológico. Portanto, pode o indivíduo ser considerado incapaz de viver, e, no entanto, por isso mesmo que vive, merece a proteção do direito” (destaquei).
Não pode, entretanto, o Direito ficar permanentemente adstrito a conceitos congelados no tempo, que não mais refletem o atual estágio da ciência, especialmente no tocante ao conceito de VIDA HUMANA.
Conforme salienta Débora Diniz[16]:
(...) assim como na definição dos conceitos de pessoa e coisa, a melhor estratégia para definir o conceito de vida humana será pela exclusão de seu contrário: vida humana é tudo aquilo que apenas um ser humano vivo é capaz de experimentar. Ou dito de outra forma: é um ser humano vivo quem não está morto. Esta definição é capaz de considerar a potencialidade de viver a vida como equivalente a estar vivo, sendo possível afirmar que a vida humana é tudo aquilo que apenas um ser humano é capaz de potencialmente experimentar; um ser humano potencialmente vivo é quem não está morto. (...) Em outros termos, é preciso estar vivo para ser pessoa e poder ter direito à vida. (...) Considerando que, ainda como um exercício de pensamento, os fetos estariam incluídos no status de pessoa, seria possível afirmar que os fetos com potencialidade de vida extra-uterina têm direito à vida. Mas, e quanto aos fetos inabilitados para viver a vida, tal como diagnóstico de anencefalia? Como imputar o direito à vida na ausência do conteúdo do direito, que é a própria vida? (...) Não é possível reconhecermos um status moral e um direito fundamental de um ser inexistente ou daquele a favor de quem, mesmo potencialmente, não é possível imputar uma expectativa de direito.
A proteção jurídica ao feto parte do pressuposto de que ele apresenta um potencial para a vida extra-uterina autônoma, e que, por isso, é uma expectativa de pessoa. Este potencial, porém, no que diz respeito ao feto anencefálico, inexiste, pois, em razão da gravíssima malformação que apresenta, está inteiramente incapacitado para a vida consciente e de relação. É que essa não se confunde com a mera subsistência das funções vegetativas (presentes no anencéfalo pela existência do tronco encefálico), que é condição necessária, porém não suficiente para a vida humana, porquanto é característica comum às espécies animais.
Na expressiva lição de Alberto da Costa Franco[17]:
O feto anencefálico carece das potencialidades que caracterizam e justificam a proteção/inviolabilidade da vida humana em forma: não seria ato nem potência. Bem por isso se mostra correta a afirmação de que o feto anencéfalo, um projeto embriológico falido, “não é um processo de vida, mas um processo de morte”. Não se está diante de um nascituro, antes de um morituro. Destarte, os pacientes em estados neurológicos intermédios – e, em particular, na anencefalia – que não atendem aos requisitos da morte cerebral, mas se enquadram na perspectiva da morte neocortical, não podem ser considerados tecnicamente vivos.
É a presença da consciência que define a natureza e a condição humanas. Onde não há sequer possibilidade de consciência, não há vida humana, não se justificando, por isso, a extensão aos anencéfalos da tutela conferida pelo Direito Civil aos nascituros.
10. Perspectiva do Direito Constitucional
Na perspectiva constitucional, vale lembrar que na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, ajuizada em junho de 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, são apontados como violados os seguintes preceitos fundamentais: a) dignidade da pessoa humana; b) legalidade, liberdade e autonomia da vontade e c) direito à saúde.
Com efeito, a dignidade da pessoa humana consta em nossa Constituição como fundamento do Estado democrático de direito (art. 1º, III). No que diz com este princípio fundamental, salienta Luís Roberto Barroso[18]:
Impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causando-lhe dor, angústia e frustração, importa violação de ambas as vertentes de sua dignidade humana. A potencial ameaça à integridade física e os danos à integridade moral e psicológica na hipótese são evidentes. A convivência diuturna com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto dentro de seu corpo, que nunca poderá se tornar um ser vivo, podem ser comparadas à tortura psicológica. A Constituição Federal, como se sabe, veda toda forma de tortura (art. 5°, III) e a legislação infra-constitucional define a tortura como situação de intenso sofrimento físico ou mental (acrescente-se: causada intencionalmente ou que possa ser evitada).
O princípio da legalidade, consagração de liberdade individual, está contemplado no inc. II do art. 5º da Constituição Federal e assegura que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.” No caso da antecipação terapêutica de parto, não se encontrando vedada em nosso ordenamento jurídico, não é justificável o cerceamento à liberdade da gestante dispor do próprio corpo.
O direito à saúde, assegurado no art. 196 da carta constitucional, é erigido à dignidade de direito fundamental. No caso de gravidez de feto anencefálico, além das possíveis complicações antes apontadas, é preciso atentar para o fato de que o atual conceito de saúde não se limita ao bem-estar físico, mas, segundo a Organização Mundial de Saúde, abrange também o equilíbrio psíquico e social, que, nesta circunstância, restam profundamente abalados.
11. Conclusões
Por todo o exposto, conclui-se:
1. o critério para definir a morte é um dado cultural, variável conforme a evolução da ciência;
2. na atualidade ganha prestígio o conceito de morte neocortical, ligado à abolição das funções superiores do sistema nervoso central que possibilitam a existência da consciência, da capacidade cognitiva, da vida de relação, da comunicação, da afetividade e da emotividade;
3. o feto anencefálico, embora possa apresentar uma efêmera preservação das funções meramente vegetativas, pode ser definido, nesta perspectiva, como morto;
4. a antecipação terapêutica de parto não é a causa da morte do anencéfalo, mas apenas a ocasião para que esta ocorra;
5. o caráter terapêutico dessa intervenção decorre não apenas das possíveis complicações fisiológicas que podem advir para a gestante como também das nocivas seqüelas psíquicas que são a ela impingidas por uma gravidez dessa espécie;
6. na perspectiva Bioética, a antecipação de parto justifica-se por atender aos quatro princípios informadores dessa ciência: autonomia, justiça, beneficência e não-maleficência;
7. no âmbito do Direito Penal, a antecipação de parto é conduta atípica;
8. no Direito Civil, impõe-se uma atualização da legislação aos novos rumos da ciência, não se estendendo ao anencéfalo, conceitualmente dado como morituro, a proteção conferida aos nascituros;
9. constitucionalmente, a antecipação terapêutica de parto atende aos princípios da dignidade da pessoa humana, da legalidade e do direito à saúde.
12. Referências bibliográficas
BRASIL. ADPF nº 54. Disponível em: <http://conjur.estadao.com.br/static/text/26549,1.> Acesso em: 25 out. 2005.
DINIZ, Débora e BRUM, Eliane. Uma história severina. ImagensLivres, 2005. 1 disco compacto: digital.
DINIZ, Débora e COSTA RIBEIRO, Diaulas. Aborto por anomalia fetal. 1ª reimp. Brasília: Letras Livres, 2004.
Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO). Disponível em: < http://www.febrasgo.org.br/anencefalia1.htm>. Acesso em: 25 out. 2005.
FRANCO, Alberto da Silva. Anencefalia – breves considerações médicas, bioéticas, jurídicas e jurídico-penais. RT/Fasc.Pen., ano 94, v. 833, mar. 2005.
GHERARDI, Carlos e KURLAT, Isabel. Anencefalia e interrupción del embarazo – análisis médico y bioético de los fallos judiciales a propósito de un caso reciente. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 52, jan-fev.2005. São Paulo: RT. pp. 53-70.
MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Parte Geral. Tomo I. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954.
NÉRI DA SILVEIRA, José. Parecer. Disponível em: <http://www.providaanapolis.org.br/pareneri.htm>. Acesso em: 21 set. 2005.
SANTOS, Rita Maria Paulino dos. Dos transplantes de órgãos à clonagem. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
* Desembargador do TJRS. Palestrante na Escola Magistratura da AJURIS. Presidente do IBDFAM/RS.
[1] trecho do cordel de J. Borges. In: DINIZ, Débora e BRUM, Eliane. Uma história severina. ImagensLivres, 2005. 1 disco compacto: digital.
[2] Disponível em: < http://www.febrasgo.org.br/anencefalia1.htm>. Acesso em: 25 out. 2005.
[3] Disponível em: < http://www.febrasgo.org.br/anencefalia1.htm>. Acesso em: 25 out. 2005.
[4] apud Rita Maria Paulino dos Santos. Dos Transplantes de órgãos à clonagem. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 35.
[5] Anencefalia – breves considerações médicas, bioéticas, jurídicas e jurídico-penais. RT/Fasc.Pen., ano 94, v. 833, mar. 2005, p. 403.
[6] MARTINEZ, Stella Maris. La incorporación de la reflexión bioética a las decisiones judiciales: um puente al futuro. Apud Alberto da Silva Franco. op. cit., p. 403.
[7] GHERARDI, Carlos. La muerte cerebral: uma mirada critica y reflexiva. Apud Alberto da Costa Franco. op. cit., p. 404.
[8] Anencefalia e interrupción del embarazo – análisis médico y bioético de los fallos judiciales a propósito de un caso reciente. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 52, jan-fev.2005. São Paulo: RT. P. 58. (tradução livre).
[9] Costa Ribeiro, Diaulas. Antecipação terapêutica de parto: uma releitura jurídico-penal do aborto por anomalia fetal no Brasil. In: Aborto por anomalia fetal. 1ª reimp. Brasília: Letras Livres, 2004, p. 106.
[10] citados por Alberto da Costa Franco. Op. cit., p. 409.
[13] Op. cit., p. 416.
[14] MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Parte Geral. Tomo I. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954. p. 181.
[15] Apud NÉRI DA SILVEIRA, José. Parecer. Disponível em: <http://www.providaanapolis.org.br/pareneri.htm>. Acesso em: 21 set. 2005.
[17] Op. cit., p. 399.
[18] ADPF nº 54. Disponível em:<http://conjur.estadao.com.br/static/text/26549,1>. Acesso em: 25 out. 2005.
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