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quarta-feira, 8 de junho de 2011

DOUTRINA - PARENTALIDADE SOCIOLÓGICA, UMA AFIRMAÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA


                        Luiz Felipe Brasil Santos

(publicado em fevereiro.2006) 

Um dos mais instigantes temas da atualidade, no âmbito do Direito de Família, é o que diz respeito às relações parentais, e, dentro dele, as possíveis repercussões da comumente denominada “paternidade socioafetiva” ou sociológica.
Para a adequada compreensão do tema, impõe-se uma visão inicial das transformações que a concepção de família sofreu durante o século recentemente findo.
Ao longo da história, a entidade familiar tradicionalmente exerceu uma dupla função: a) unidade de produção de bens e transmissão do patrimônio; b) célula reprodutora e socializadora de cidadãos. Assim, no dizer de Michelle Perrot[1], “a família, como rede de pessoas e conjunto de bens, é um nome, um sangue, um patrimônio material e simbólico, herdado e transmitido”.
Ao tempo do Código Civil de 1916, e ainda durante toda a primeira metade do século XX, a família só se concebia como a união formada a partir do casamento civil, que lançava as bases de uma realidade social de contornos perfeitamente definidos e plena visibilidade dentro da coletividade.
As pessoas casavam com uma perspectiva essencialmente utilitarista: ter filhos, auxiliar-se mutuamente na luta pela vida, e, se possível, formar um patrimônio e transmiti-lo à descendência.  Daí porque era importante ter uma família numerosa, que formasse uma boa força de trabalho, propiciando melhores condições de sobrevivência ao grupo.
Nessa visão, o lugar do afeto no âmbito familiar, tanto no momento de sua formação (pelo casamento) quanto na sua posterior manutenção, era secundário, preponderando os aspectos institucionais e utilitários do matrimônio e da filiação.
Este quadro, entretanto, que já começara a ser gradualmente transformado a partir da revolução industrial, passou a sofrer uma acelerada mudança depois da segunda guerra mundial, com o incremento da urbanização e da emancipação feminina. Os costumes se modificaram. O afeto passou a ocupar um lugar central na relação conjugal, constituindo o seu próprio fundamento e a única justificativa da preservação da união. O casamento deixou de ter um caráter preponderantemente institucional para se converter em uma mera formalidade, à qual muitos casais optavam por não aderir, temendo que viesse a deteriorar a relação.
A partir daí, a família e o casamento passam a existir e se justificar como forma de propiciar o desenvolvimento da pessoa, em sua plenitude existencial. Assim, enquanto ao início do século XX (tempo do Código Civil de 1916) a família preponderava sobre o indivíduo, a relação agora se inverte, passando ela a ser avaliada em função da contribuição que possa oferecer à realização das vidas privadas. Constitui-se a denominada família eudemonista.
Em extraordinária síntese, constata Michelle Perrot[2]:
As rupturas a que assistimos hoje são a culminação de um processo de dissociação iniciado há muito tempo. Ele está ligado, em particular, ao desenvolvimento do individualismo moderno no século XIX. Um imenso desejo de felicidade, essa felicidade que o revolucionário Saint-Just considerava uma idéia nova na Europa – ser a gente mesmo, escolher sua atividade, sua profissão, seus amores, sua vida – apoderou-se de cada um. Especialmente das categorias mais dominadas da sociedade – os operários, por exemplo – e da família: os jovens, as mulheres . (...) Não é a família em si que nossos contemporâneos recusam, mas o modelo excessivamente rígido e normativo que assumiu no século XIX. Eles rejeitam o nó, não o ninho. A casa é, cada vez mais, o centro da existência. O lar oferece, num mundo duro, um abrigo, uma proteção, um pouco de calor humano. O que eles desejam é conciliar as vantagens da solidariedade familiar e as da liberdade individual. Tateando, esboçam novos modelos de famílias, mais igualitárias nas relações de sexos e de idades, mais flexíveis em suas temporalidades e em seus componentes, menos sujeitas à regra e mais ao desejo. O que se gostaria de conservar da família, no terceiro milênio, são seus aspectos positivos: a solidariedade, a fraternidade, a ajuda mútua, os laços de afeto e o amor. Belo sonho.

É neste contexto que surge a Constituição de 1988, consagrando esse caráter instrumental do grupamento familiar, como meio apto a propiciar o pleno desenvolvimento de seus membros. É abandonada a rigidez do sistema codificado. O casamento deixa de ser a única forma de constituir família, sendo reconhecida como entidade familiar a união estável (art. 226, § 3o, da CF) e o conjunto formado por qualquer dos pais e seus descendentes (família monoparental) também encontra expressão (art. 226,§ 4o.da CF).
Os antigos paradigmas – a) autoridade única do marido; b) formação exclusiva a partir do casamento civil; c) desigualdade na filiação e d) indissolubilidade do vínculo – dão seu lugar aos novos, a saber: a) democratização na gestão familiar; b) pluralidade na formação; c) igualdade absoluta entre os filhos e d) facilitação para dissolver o matrimônio.
Substitui-se o velho modelo – baseado na autoridade despótica, na falsidade institucionalizada e na hipocrisia – pelo novo, fundado na igualdade, na verdade e na afetividade.
E é justamente a partir dessa concepção de família que devemos nos debruçar sobre o tema da filiação, que, como não poderia deixar de ser, evoluiu ao influxo dessas alterações.
Tendo a Carta de 1988 eliminado a vetusta e odiosa discriminação entre os filhos conforme sua origem, adotando o estatuto unificado da filiação – no qual FILHO passou a ser um substantivo bastante em si, não aceitando adjetivações preconceituosas e discriminatórias –, um passo gigantesco foi dado, abrindo perspectivas para um novo universo até então não pensado.
Numa visão retrospectiva, é preciso ter presente que no Direito, tradicionalmente, a definição da paternidade sempre apareceu como questão tormentosa, uma vez que a maternidade resulta das evidências, enquanto sobre a paternidade recaía o manto da incerteza. Os romanos resumiam essa compreensão na conhecida formulação mater semper certa est, pater incertus.
O Código Civil Brasileiro de 1916, ao tratar dos critérios de estabelecimento da filiação – aliás, na linha das codificações de inspiração romana – optou por uma nítida lógica patrimonialista, fazendo com que a tutela dos filhos ficasse ligada à espécie de relacionamento mantido entre os pais. Para o legislador de final do século XIX e princípio do século XX, acima dos interesses da prole e da própria família – instituição social – impunha-se preservar o casamento – instituição jurídica. Assim, na perspectiva desse diploma, portador de plenos direitos era apenas o filho legítimo, aquele concebido na constância do casamento dos pais.
Em notável ensaio sobre o tema, salienta Gustavo Tepedino[3]:
Em primeiro lugar, os bens deveriam ser concentrados e contidos na esfera da família legítima, assegurando-se a sua perpetuação na linha consangüínea, como que resguardados pelos laços de sangue. Em seguida, e em conseqüência, por atrair o monopólio da proteção estatal à família, o casamento representava um valor em si, identificava-se com a noção de família (legítima), de sorte que a sua manutenção deveria ser preservada a todo custo, mesmo quando o preço da paz (formal) doméstica fosse o sacrifício individual de seus membros, em particular da mulher e dos filhos sob pátrio poder. Daí a indissolubilidade do vínculo matrimonial; o poder marital e a subordinação da mulher casada ao cônjuge varão; a chefia centralizadora da sociedade conjugal atribuída ao marido; os excessivos poderes definidores do pátrio poder ; a presunção de paternidade do marido (...) , sempre em favor da manutenção da paz doméstica.

Sob o influxo dessa ideologia, que tinha em mira, acima de tudo, manter a unidade matrimonial, e, por decorrência, patrimonial, é que foi incorporado em nossa legislação civil codificada o princípio romano pater vero is est quem justae nuptiae demonstrant, que, de forma lapidar, foi assim justificado por Lafayete Rodrigues Pereira[4]: “A paternidade, porém, é, por sua natureza, oculta e incerta; e, pois, não pode ser firmada em prova direta, como a maternidade. Daí a necessidade de fundá-la em uma probabilidade que a lei eleva à categoria de presunção legal”.
Como ensina Luiz Roldão de Freitas Gomes[5]:
a motivação da regra estava em evitar que pessoas alheias à família pudessem levantar suspeitas injuriosas contra a mulher, que pudessem causar perturbação às relações matrimoniais. (...) Há de se reter também – o que auxilia na interpretação da regra no Direito Romano – que nele vigorava o princípio geral de que aos filhos nascidos de uniões qualificadas como matrimônios legítimos (...) é atribuído o status civitates de que o pai desfrutava ao tempo da concepção.

Daí a necessidade de atribuir ao marido da mãe a paternidade dos filhos por esta concebidos. A presunção pater is est , portanto, faz prevalecer – em nome da “paz doméstica”, da moral então vigente, e do interesse patrimonial – o que Luiz Edson Fachin denominou de “paternidade jurídica” sobre a paternidade biológica. É o que se define como primeira fase do direito da filiação.
Além das razões de ordem moral, de defesa da estabilidade familiar, e do interesse em preservar a segurança na transmissão do patrimônio no âmbito da família, que então informavam a predominância da presunção pater is est, há que ter em conta também que, à época, os recursos da ciência não permitiam que se investigasse diretamente a verdade acerca da paternidade biológica, concorrendo, assim, para que esta – que não resultava das evidências (ao contrário da maternidade) – acabasse cedendo passo àquela estabelecida a partir de presunções. Ou seja, um fato conhecido (a coabitação conjugal), aliado à fidelidade da mulher (posta como dever conjugal) levava a inferir certeza acerca de outro fato em torno do qual não se podia ter conhecimento direto (a concepção de um filho).
E tão grande era a preocupação do codificador civil com a preservação dessa presunção, tida como pacificadora das famílias, que toda uma série de suportes legais foram erguidos para sustentá-la, quais sejam: 1) apenas ao marido era dada a legitimação para intentar a ação que visava a contestar a legitimidade dos filhos havidos por sua esposa na constância matrimonial (art. 344, CC/16) . Não tomasse ele a iniciativa, ninguém jamais poderia fazê-lo; 2) mesmo a ação intentada exclusivamente pelo marido encontrava prazos extremamente curtos para seu exercício ( 2 ou 3 meses, conforme as circunstâncias dos §s 3o. e 4o. do art. 178 do CC/16); 3) a ação exercida por aquele exclusivo titular dentro dos prazos curtíssimos que lhe eram ensejados deveria, ainda por cima, encontrar fundamentação apenas nas hipóteses limitadas do art. 340, incs.I e II, do CC/16, que, em resumo, restringiam-se à ausência de coabitação do casal no período conceptivo . Não bastassem todas essas restrições, ainda se acrescentava, como regra de segurança, que nem a prova do adultério da mulher e nem sequer a sua confissão (arts. 343 e 346, CC/16) bastariam para afastar a rigidez da presunção de que pai era o marido.
Entretanto, apesar de a legislação codificada lançar no opróbrio a filiação na perspectiva biológica – chegando ao extremo de que os filhos adulterinos e os incestuosos estavam condenados a jamais ser reconhecidos – esse vínculo natural foi se impondo gradualmente na legislação extravagante. Em 1941, o Decreto-Lei 3.200 determina não se faça menção, nas certidões de registro civil, da filiação ilegítima, salvo a requerimento do próprio interessado ou em virtude de decisão judicial. Em 1942, o Decreto-Lei 4.737 permite que o filho adulterino possa ser reconhecido ou obter o reconhecimento judicial da filiação, após o desquite do genitor adúltero. Em 1949, a Lei 883, revogando o Decreto-Lei 4.737/42, amplia a regra, possibilitando o reconhecimento após a dissolução da sociedade conjugal do genitor, o que abrange também a situação de viuvez. Em 1977, a Lei 6.515 (Lei do Divórcio) permite que o reconhecimento se dê ainda na constância do casamento, desde que ocorra mediante testamento cerrado, aprovado antes ou depois do nascimento do filho. Em 1984, a Lei 7.250 avança mais um passo, admitindo o reconhecimento do filho havido fora do matrimônio pelo cônjuge separado de fato há mais de cinco anos contínuos. Em 1988, finalmente, a Constituição Federal afasta qualquer distinção entre os filhos, afirmando-os iguais em direitos, independentemente da espécie de relacionamento existente entre os genitores. Por fim, para não deixar qualquer dúvida (apesar da clareza do texto constitucional), a Lei 7.841/89 veio a revogar expressamente o art. 358 do Código Civil de 1916, que impedia o reconhecimento de filhos incestuosos e adulterinos.
A jurisprudência, por sua vez, na dianteira da evolução legislativa, como ocorre especialmente na área do Direito de Família, em esforço exegético direcionado à superação das amarras legais que impediam a descoberta da verdade real acerca da filiação, já vinha fazendo o seu trabalho, solapando os alicerces que mantinham praticamente intangível a presunção pater is est, consagradora da paternidade jurídica.
Assim, quanto à limitação dos fundamentos que servem de base para contestar a legitimidade dos filhos havidos pela mulher na constância do casamento, afirmou-se estar ab-rogado o art. 340 do CC/16, por cercear a possibilidade de investigar a paternidade, assegurada pela igualdade constitucional dos filhos, qualquer que seja a origem da filiação, como também pelos arts. 26 e 27 do ECA. Nesse sentido, vale conferir os acórdãos proferidos na APC 595163114 , da 8ª Câmara do TJRS, e os REsp. 4.987 e 194.866-RS  da 3a. Turma do STJ .
No que diz com a legitimação exclusiva do marido para contestar a paternidade dos filhos havidos por sua mulher na constância do casamento, afirmou-se também ab-rogado o art. 344 (CC/16), por incompatível com a legitimidade do filho reconhecido para demandar contra terceiro o reconhecimento da paternidade. Ocorre que a razão de ser de tal dispositivo estava no favor legitimitatis (protetor do casamento na perspectiva institucional), o que é totalmente incompatível com o hoje constitucionalmente consagrado favor filii (prioridade do interesse do filho). Flagrou-se uma franca contradição desse dispositivo limitador do art. 344, do CC/16, com os vetores axiológicos que regem a atual organização familiar, pois, enquanto anteriormente a preocupação era de proteger a instituição familiar, o norte constitucional passou a priorizar, acima de qualquer outra consideração, a proteção dos filhos. Assim decidiu a Corte gaúcha, ainda ao tempo da vigência do código Beviláqua, por exemplo, na APC 595163114 (8ª Câmara Cível do TJRS) e no AI 599296654 (7a. Câmara Cível do TJRS).
Finalmente, refletindo o trabalho jurisprudencial direcionado à ampliação das possibilidades investigatórias, culminou-se por reconhecer superados os prazos exíguos da negatória, estatuídos nos parágrafos 3º e 4º do art. 178 (CC/16), em razão de não ser lógico, por um lado, ter-se por imprescritível a ação do filho para demandar o reconhecimento da filiação contra terceiro, e, por outro, limitar-se rigidamente o prazo paterno para impugnar a paternidade . Isso ocorreu, v.g., nas APC 595163114 e 596054056, ambas da 8ª Câmara Cível do TJRS.
Embora algumas resistências iniciais a esse entendimento ainda se encontrassem no STJ, essa Alta Corte, antes da vigência do atual Código, mostrou abertura quanto ao tema, ao decidir, no REsp. 194.866 (3ª Turma – rel. Min. Eduardo Ribeiro), que “admitindo-se a contestação  da paternidade, ainda quando o marido coabite com a mulher, o prazo de decadência haverá de ter como termo inicial a data em que disponha ele de elementos seguros para supor não ser o pai do filho de sua esposa.”
Ao tempo em que ocorria toda uma mudança na valoração social da família, sobreveio o avanço científico, especialmente na área genética, com a introdução do método do DNA, que passou a permitir a determinação da paternidade com certeza praticamente absoluta, tornando flagrantemente obsoleto todo um arcabouço legislativo próprio do século passado, que – além dos outros fatores já apontados – também por falta de alternativa científica tinha que se contentar com meras aparências e presunções (pater is est ). As possibilidades que tal tecnologia passou a oferecer simplesmente relegaram para o museu da história a já lembrada máxima mater semper certa est, pater incertus, pois a paternidade já não mais se revestia de incerteza, e, em contrapartida, a maternidade, antes tão garantida pelas evidências fisiológicas, hoje já não se tinha por segura, ante a evolução nas técnicas de reprodução assistida.
Essa possibilidade proporcionada pela ciência de decifrar o segredo das origens da pessoa humana baliza o que Jose Castan Tobeñas[6] denomina de “primeira revolução biológica”, que está na base do grande movimento de reforma da filiação, desenvolvido nos países ocidentais na segunda metade do século XX e que teve seu reflexo, em um primeiro momento, na jurisprudência.
Postas, dessa forma, as condições legais e científicas para a plena afirmação da paternidade em sua perspectiva biológica, o que se pode definir como sendo a segunda fase do direito da filiação, onde é permitida, modo irrestrito, a investigação da paternidade genética, em detrimento da jurídica. Isso resulta consolidado sobretudo nos arts. 26 e 27 da Lei 8.069/90, assim como na Lei 8.560/92.
Entretanto, a extraordinária dinâmica das relações familiares em nosso tempo conduz ao que João Baptista Villela[7] denomina de “desbiologização da paternidade”, que passou a configurar a terceira fase do direito da filiação, na qual se ingressa, e sob cujo enfoque a verdadeira parentalidade é a que se funda no afeto – parentalidade socioafetiva ou sociológica, que se revela pela “posse do estado de filho” – podendo ou não coincidir com o vínculo biológico ou jurídico.
Posse do estado de filho, sinale-se, consiste em ostentar frente aos olhos do público a condição de filho de alguém. Para Clóvis Beviláqua, “resulta de uma série de fatos que, no seu conjunto, bastem para demonstrar as relações de filiação e paternidade entre um indivíduo e o chefe da família a que ele pretende pertencer”[8] Essa ostensividade se manifesta sob três aspectos: nome, trato e fama ( nomen, tractatus, fama ). Isto é: o filho deve possuir o sobrenome paterno, ser por este tratado como filho e assim reconhecido no meio social. É certo, porém, que a doutrina valoriza mais os dois últimos aspectos (tratamento e fama), admitindo que o fato de o filho nunca ter usado o sobrenome paterno não descaracteriza a “posse de estado”.
No direito comparado, noticia-se que, em França e Portugal, com as  reformas de 1972 e 1977, respectivamente, ensaia-se expressamente o reconhecimento da paternidade socioafetiva como geradora de alguns efeitos. Em ambos os sistemas, conforme salienta J. C. Delinski[9], três aspectos ressaltam na visualização da “posse de estado” de filho como forma de definição da paternidade : a) a valorização da “posse do estado de filho” busca uma aproximação, ou presunção, da verdade biológica; b) através da “posse de estado” (reveladora dos laços afetivos), faz prevalecer os interesses do filho; c) o reconhecimento da “posse de estado de filho” como causa suficiente para oportunizar o reconhecimento da paternidade socioafetiva depende da filiação de fato, o que deixa ao julgador grande margem de interpretação.
Para tal fenômeno em muito contribuiu a dissociação  entre sexualidade e reprodução, em decorrência do emprego cada vez mais ampliado das tecnologias reprodutivas. Atente-se que inicialmente a pílula anticoncepcional havia afastado o ato sexual de sua necessária conseqüência reprodutiva.  Posteriormente, com a introdução das técnicas de reprodução assistida deu-se mais um passo, desligando-se a reprodução de seu pressuposto, o ato sexual. Além disso, ficou profundamente alterada a noção de ato procriador, antes situado na mais estrita intimidade do casal, agora podendo resultar de um ato público, com intervenção de terceiros, cientificamente comprovável.
Esse radical avanço científico configurou a segunda revolução biológica, cujos reflexos inevitavelmente se lançaram sobre o Direito de Família, fazendo com que muitos juristas tenham passado a tratar da filiação fora de um suporte meramente biológico, em favor de uma paternidade de intenção, constituída a partir da vontade.  Como assinala Guilherme Calmon Nogueira da Gama[10]:
É fundamental considerar, no âmbito da parentalidade-filiação decorrente das técnicas de reprodução assistida, a vontade como elemento essencial para o fim de se admitir o estabelecimento do vínculo de paternidade-filiação e de maternidade-filiação.
Alinhado nesse diapasão, nosso atual Código Civil, na disposição pioneira do art. 1.593, de conteúdo extremamente aberto, define como parentesco civil a relação que decorre de “outra origem” que não a consangüinidade (geradora esta do parentesco natural).
Interessante ressaltar que na redação original do Projeto do Código constava como parentesco civil apenas aquele resultante da adoção, ignorando por completo a situação daqueles filhos havidos por inseminação artificial heteróloga (art. 1.597, inc. V), que, a permanecer aquele texto, não teriam relação de parentesco possivelmente nem sequer com o marido da mãe (e com os parentes deste), o que configuraria evidente absurdo. Na etapa final de tramitação do Projeto, já na Comissão de Redação é que, resultante de proposta encaminhada pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), foi modificada a parte final do dispositivo, sendo trocada a palavra “adoção” pela expressão “outra origem”. Na justificativa[11] então apresentada ficou consignado que:
A proposta de retificação do texto do dispositivo substituindo “adoção” por “outra origem” leva em conta a necessidade de não se excluírem outras fontes das relações de parentesco como, por exemplo, aquelas relativas à utilização de técnicas de reprodução assistida com a utilização de material genético de terceiro. Por força do disposto no art. 227, § 6º, da Constituição Federal, bem como do reconhecimento da presunção de paternidade relativamente ao marido que consente que sua esposa seja inseminada artificialmente com sêmen de terceiro (o doador), logicamente que a criança que venha a nascer, fruto de uma das técnicas de reprodução assistida, terá vínculos de parentesco não apenas com os pais, mas também com os parentes em linha reta e em linha colateral deles. Ademais, a expressão proposta enseja o reconhecimento jurídico da paternidade socioafetiva, fonte das mais saudáveis relações familiares. Portanto, a referência apenas à adoção é restritiva e exclui outras fontes do parentesco civil, motivo pelo qual deve ser retificada a redação do dispositivo.

A expressão “outra origem” engloba, portanto, a filiação não decorrente da consangüinidade, que se pode classificar em: a) adotiva; b) havida por reprodução artificial heteróloga; c) sociológica ou socioafetiva (resultante da posse de estado de filho). Nesse sentido é o Enunciado nº 103[12], aprovado por ocasião da I JORNADA DE DIREITO CIVIL, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, em setembro de 2002, que, na exegese do art. 1.593, sustenta:
O Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo assim a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse de estado de filho.

Enquanto a filiação consangüínea (onde estão incluídos os filhos havidos por reprodução artificial homóloga) tem como origem e fundamento a concepção (intencional ou fortuita), a filiação civil (onde se inclui a resultante de reprodução artificial heteróloga) resulta, como antes assinalado, da vontade, inspirada pelo afeto.
Reconhecendo esse fenômeno, o Enunciado nº 104[13] do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, aprovado por ocasião da mesma Jornada, afirma:
No âmbito das técnicas de reprodução assistida envolvendo o emprego de material fecundante de terceiros, o pressuposto fático da relação sexual é substituído pela vontade (ou, eventualmente, pelo risco da situação jurídica matrimonial) juridicamente qualificada, gerando presunção absoluta ou relativa de paternidade no que tange ao marido da mãe da criança concebida, dependendo de manifestação expressa (ou implícita) de vontade no curso do casamento.

Desse modo, a mais abalizada teoria familiarista, coerente com a defesa dos melhores interesses da criança e orientada pela doutrina da proteção integral, vem pugnando por um enfoque mais amplo que consiste em valorar a “posse do estado de filho” como verdadeiro balisador da definição da paternidade, valendo lembrar, com João Baptista Villela[14] , que “se se prestar atenta escuta às pulsões mais profundas da longa tradição cultural da humanidade, não será difícil identificar uma persistente intuição que associa a paternidade antes com o serviço que com a procriação. Ou seja: ser pai ou ser mãe não está tanto no fato de gerar quanto na circunstância de amar e servir.”
Assim é com efeito. É Françoise Héritier[15] que, em interessantíssimo estudo antropológico acerca de diferentes formações familiares primitivas, conclui:
Não existem, até nossos dias, sociedades humanas que sejam fundadas unicamente sobre a simples consideração da procriação biológica ou que lhe tenham atribuído a mesma importância que a filiação socialmente definida. Todos consagram a primazia do social – da convenção jurídica que funda o social – sobre o biológico puro. A filiação não é, portanto, jamais um simples derivado da procriação.
A fundamentação legal dessa forma de visualizar a paternidade agora se ampara no art. 1.593 do Código Civil, que, sob a inspiração da doutrina da proteção integral (art. 227 da Constituição Federal e arts. 4º e 6º da Lei 8.069/90), permite, em nosso ordenamento positivo, a consagração do vínculo sociológico ou socioafetivo, revelado pela “posse do estado de filho”, como gerador de efeitos jurídicos capazes de, em determinadas circunstâncias, definir a filiação. Com efeito, qual a melhor forma de assegurar à criança e ao adolescente, com “absoluta prioridade”, a efetivação dos amplos direitos que lhes são assegurados na Carta Maior e no Estatuto da Criança e do Adolescente, assim como a plena dignidade como pessoa humana (e não mera associação de gametas), a não ser garantindo-lhes juridicamente um vínculo afetivo que lhes preserve o equilíbrio emocional ?
Nessa esteira, destaca Heloisa Helena Barboza[16]:
Indispensável salientar que o reconhecimento da paternidade afetiva não configura uma “concessão” do direito ao laço de afeto, mas uma verdadeira relação jurídica que tem por fundamento o vínculo afetivo, único, em muitos casos, capaz de permitir à criança e ao adolescente a realização dos direitos fundamentais da pessoa humana e daqueles que lhes são próprios, a saber: direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, assegurando-lhes, enfim, o pleno desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.

Em excelente monografia sobre o tema, José Bernardo Ramos Boeira[17], ao concluir, salienta que:
a verdade socioafetiva deve assumir papel de destaque, sobretudo nos casos em que é importante manter a estabilidade de famílias que cumpram o seu papel afetivo e social, embora não assentem num vínculo biológico, e ainda nos casos em que se deva evitar o reconhecimento da filiação biológica por inconveniência para os interesses do filho. Esta situação aparece, claramente, quando se trata de inseminação artificial heteróloga consentida, por exemplo, em que a proibição de impugnar a paternidade do marido, que recai sobre o cônjuge que consentiu na referida inseminação, afasta a verdade biológica, devendo a verdade estruturar-se na verdade sociológica, que é revelada pela posse de estado de filho.

Expressando bem, na ficção, aquilo em que consiste a parentalidade socioafetiva, o escritor francês Marcel Pagnol[18], na obra “César”,  dramatizando o encontro entre o pai que criou a criança (pai afetivo, portanto) e o pai biológico, cria um diálogo, onde o primeiro, dirigindo-se ao segundo, diz:
“Existe a paternidade daquele que deu a vida. Existe a paternidade daquele que pagou as mamadeiras. Quando ele nasceu, pesava quatro quilos (...) quatro quilos da carne de sua mãe. Mas hoje, ele pesa nove quilos, e tu sabes o que é isso, esses cinco quilos a mais, são cinco quilos de amor”. Ao final, arremata: “Pai é aquele que ama.”

Na medida em que se admita que a verdadeira família encontra sua justificativa nas relações de afeto (parentalidade sociológica ou socioafetiva) e não em superadas ficções jurídicas (paternidade jurídica) ou no mero partilhamento genético (paternidade biológica), estaremos dando nossa contribuição à realização plena do ser humano no âmbito familiar, ensejando relações que correspondam ao novo papel que atualmente se atribui a este conjunto de pessoas. Utilizando a feliz imagem de Michelle Perrot[19]: não mais um “nó”, permeado de aparências, hipocrisia e dominação, mas, sim, um “ninho” de afetos verdadeiros e assumidos.


Referências

BARBOZA, Heloisa Helena. Novas relações de filiação e paternidade. . In: Congresso Brasileiro de Direito de Família. 1. Anais. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.

BEVILÁQUA, Clóvis. Direito de família. 8ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos.

BRASIL. Conselho da Justiça Federal. Centro de Estudos Judiciários. Disponível em: http://www.cjf.gov.br/revista/enunciados/IJornada.pdf. Acesso em:16 fev. 2006.

BRASIL. IBDFAM. Disponível  em:http://www.ibdfam.org.br/private/legislacao/LegislacaoCodigo.aspx. Acesso em: 16 fev. 2006.

DELINSKI, Julie Cristine. O novo direito da filiação. São Paulo: Dialética, 1997.

FREITAS GOMES, Luiz Roldão. O direito na década de 1990. São Paulo: RT,1992.

GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

HÉRITIER, Françoise. A coxa de júpiter: reflexões sobre os novos modos de procriação. In: Estudos Feministas, ano 8, 1º sem. de 2000.

PERROT, Michelle. O nó e o ninho. In: Reflexões para o futuro. São Paulo: Abril, 1993.

RAMOS BOEIRA, José Bernardo. Investigação de paternidade – posse do estado de filho. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

TEPEDINO, Gustavo. A disciplina jurídica da filiação na perspectiva civil-constitucional. In: Direito de Família Contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 1997.

TOBEÑAS, Jose Castan. Derecho civil español:comum e foral. v.2. Madrid: Réus S.A., 1995.

VILLELA, João Baptista. A desbiologização da paternidade.In: Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Belo Horizonte, ano XXVII, n. 21, 1979.




* Desembargador do TJRS. Professor na Escola da Magistratura da Ajuris. Presidente do IBDFAM-RS.
[1] PERROT, Michelle. O nó e o ninho. In: Reflexões para o futuro. São Paulo: Abril, 1993. p. 81.
[2] PERROT, Michelle. Op. cit.
[3] TEPEDINO, Gustavo. A disciplina jurídica da filiação na perspectiva civil-constitucional. In: Direito de Família Contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 1997.p. 550.
[4] citado por Luiz Roldão de Freitas Gomes, no artigo “A presunção pater is est e a Constituição Brasileira de 1988” . In: O direito na década de 1990. São Paulo: RT,1992. p. 111.
[5] FREITAS GOMES, Luiz Roldão. Op. cit. p. 115.

[6] TOBEÑAS, Jose Castan. Derecho civil español:comum e foral. v.2. Madrid: Réus S.A., 1995. p. 219.

[7] VILLELA, João Baptista. A desbiologização da paternidade.In: Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Belo Horizonte, ano XXVII, n. 21, 1979.
[8] BEVILÁQUA, Clóvis. Direito de família. 8. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, p. 319.
[9] DELINSKI, Julie Cristine. O novo direito da filiação. São Paulo: Dialética, 1997. p. 79.
[10] GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 693.
[12] Disponível em: http://www.cjf.gov.br/revista/enunciados/IJornada.pdf. Acesso em:16 fev. 2006
[13] Disponível em: http://www.cjf.gov.br/revista/enunciados/IJornada.pdf. Acesso em:16 fev. 2006.
[14] Citado por Julie Cristine Delinski, op. cit., p. 33.
[15] HÉRITIER, Françoise. A coxa de júpiter: reflexões sobre os novos modos de procriação. In: Estudos Feministas, ano 8, 1º sem. de 2000. p. 98
[16] BARBOZA, Heloisa Helena. Novas relações de filiação e paternidade. . In: Congresso Brasileiro de Direito de Família. 1. Anais. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. p. 135.
[17] RAMOS BOEIRA, José Bernardo. Investigação de paternidade – posse do estado de filho. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. 
[18] citado por J.C. Delinski, op. cit., nota 28, p. 49.
[19] PERROT, Michelle. Op. cit., p. 91.

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