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quarta-feira, 8 de junho de 2011

DOUTRINA - EMENDA CONSTITUCIONAL 66 - UMA LEITURA "POLITICAMENTE INCORRETA"

Luiz Felipe Brasil Santos 

                          (publicado em setembro.2010)



                              Poucos dias após a entrada em vigor da Emenda Constitucional 66, manifestei-me[1] no sentido de que a concretização das alterações por ela anunciadas dependeria ainda de mudanças a serem feitas no Código Civil, e que, enquanto não implementadas estas, subsistiriam os requisitos temporais para o divórcio bem como o próprio instituto da separação.
         O tema continua a render debate, embora, é preciso  reconhecer, com maciça predominância da corrente que sustenta a direta e imediata aplicabilidade do texto constitucional, com o desaparecimento da separação (judicial e extrajudicial) e abolição dos requisitos temporais para o divórcio.  Basta ver que, dos cerca de 20 artigos sobre o tema, publicados no saite do Instituto Brasileiro de Direito de Família (www.ibdfam.org.br), de lavra de diversos especialistas, com exceção do autor destas linhas, todos os demais se posicionam pela imediata aplicação do novo regramento.  Neste sentido opinam, dentre outros, Maria Berenice Dias, Paulo Luiz Netto Lobo, Zeno Veloso, Rodrigo da Cunha Pereira, Pablo Stolze Gagliano e Waldir Grisard Filho.
           O entendimento desses doutrinadores pode ser resumido no seguinte trecho de autoria de Paulo Luiz Netto Lobo[2]:
Há grande consenso, no Brasil, sobre a força normativa própria da Constituição, que não depende do legislador ordinário para produzir seus efeitos. As normas constitucionais não são meramente programáticas, como antes se dizia.
É consensual, também, que a nova norma constitucional revoga a legislação ordinária anterior que seja com ela incompatível. A norma constitucional apenas precisa de lei para ser aplicável quando ela própria se limita "na forma da lei".
Ora, o Código Civil de 2002 regulamentava precisamente os requisitos prévios da separação judicial e da separação de fato, que a redação anterior do parágrafo 6º do artigo 226 da Constituição estabelecia.
Desaparecendo os requisitos, os dispositivos do Código que deles tratavam foram automaticamente revogados, permanecendo os que disciplinam o divórcio direto e seus efeitos. O entendimento de que permaneceriam importa tornar inócua a decisão do constituinte derivado e negar aplicabilidade à norma constitucional.
(...)
Não podemos esquecer da antiga lição de, na dúvida, prevalecer a interpretação que melhor assegure os efeitos da norma, e não a que os suprima. Isso além da sua finalidade, que, no caso da EC 66, é a de retirar a tutela do Estado sobre a decisão tomada pelo casal. 
                            Em contrapartida, a autorizada voz de Sérgio Gischkow Pereira emitiu alerta em texto sob o título CALMA COM A SEPARAÇÃO E O DIVÓRCIO![3], onde, em síntese, sustentou:
Os equívocos dos entusiastas são dois: a) entender que a separação judicial (e também a extrajudicial) desapareceu; b) afirmar peremptoriamente que as exigências anteriores para o divórcio já foram eliminadas.        (...)
O mais recomendável é que de imediato se altere o Código Civil, retirando dele, se for o caso, a separação judicial (e, do Código de Processo, a extrajudicial), eliminando os requisitos de prazo para divórcio e definindo se a discussão de culpa permanece ou não. Não agir assim é provocar grande tumulto e divergências, tendo como resultado muito maior demora nos processos e o risco de futura epidemia de nulidades e carências de ação em milhares deles! O povo merece maior consideração!
                           Também cautelosa é a posição de Gilberto Schäfer, que, em interessante artigo intitulado A EMENDA CONSTITUCIONAL 66 E O DIVÓRCIO NO BRASIL[4], conclui que a referida Emenda, na parte que contém a regra do divórcio, tem efetividade mediata, ou seja, depende de uma mediação infraconstitucional do Direito Civil e  do Direito Processual Civil.  
                            Passados os momentos iniciais de avaliação, e ponderados os argumentos até aqui postos, acrescento outras reflexões sobre o tema.
                          A situação que se vive agora não é nova, pois fenômeno bastante similar ocorreu há 73 anos, quando da entrada em vigor da Constituição de 1937. Lançar o olhar sobre a história é sempre pedagógico.
                        A Constituição de 1934, atendendo forte pressão dos segmentos ligados à Igreja Católica, havia inserido no ordenamento jurídico brasileiro o princípio da indissolubilidade do vínculo matrimonial, conferindo-lhe dignidade constitucional, como estratégia para servir de barreira às tentativas de introdução do divórcio em nosso país[5].  Com esse objetivo, assim dispunha no art. 144:
Art. 144 - A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado.
        Parágrafo único - A lei civil determinará os casos de desquite e de anulação de casamento, havendo sempre recurso ex officio, com efeito suspensivo.
                 Observe-se que o princípio da indissolubilidade estava posto no caput do artigo, porém entendeu-se então ser necessário ir além e se fez constar no parágrafo único a regra de que os casos de desquite e de anulação de casamento seriam regulados pela lei ordinária, com recurso necessário, provido de efeito suspensivo[6].
             No entanto, quatro anos após, a Constituição de 1937 reproduziu, no art. 124[7], a mesma redação do “caput” do art. 144 da Carta anterior, suprimindo-lhe, porém, o parágrafo único, que fazia referência ao desquite e à anulação do casamento.  Qual a conseqüência dessa supressão?  Teria deixado de existir a possibilidade do desquite, por não mais constar do texto constitucional?  É Pontes de Miranda[8] quem responde:
A Constituição de 1937 entendeu que seria impróprio do texto constitucional conter regra jurídica processual de tal pormenor; e riscou dos seus artigos o parágrafo único do art. 144 da Constituição anterior. Isso não quer dizer que, desde 10 de novembro de 1937, revogado ficasse o direito correspondente. A regra jurídica continuou, como de direito ordinário, suscetível, portanto, de derrogação e ab-rogação pelos legisladores ordinários. O que lhe cessou foi a força de princípio jurídico constitucional.  (SEM GRIFO NO ORIGINAL)
                              Ocorreu então, como se vê, a mesma situação que vivenciamos hoje, e Pontes não deixou dúvida quanto às conseqüências: subsistência da legislação ordinária.
                       Ora, nesse contexto, a entender, em contrário, que houve revogação, seríamos forçados a admitir que o próprio instituto do divórcio estaria extirpado do ordenamento jurídico, caso fosse suprimido o § 6º do art. 226 da CF!  Não creio, porém, que semelhante heresia hermenêutica encontrasse eco em nosso meio!   
                       Neste passo, é necessário relembrar a distinção entre normas materialmente constitucionais e normas apenas formalmente constitucionais. As primeiras são aquelas que: (1) dispõem sobre a estrutura do Estado, definem a função de seus órgãos, o modo de aquisição e limitação do poder, e fixam o regime político; (2) estabelecem os direitos e garantias fundamentais da pessoa; (3) disciplinam os fins sócio-econômicos do Estado; (4) asseguram a estabilidade constitucional e (5) estatuem regras de aplicação da própria Constituição.   A seu turno, as regras formalmente constitucionais são as que, embora não tenham esse conteúdo, são postas na Constituição por opção política circunstancial do Constituinte. 
                          É este o caso das atinentes ao casamento e às formas de sua dissolução. Em dado momento da história, por motivos bem identificados, entendeu o legislador ser conveniente levar aqueles dispositivos para a Constituição, embora lá não necessitassem constar. Ultrapassada aquela circunstância histórica, desconstitucionalizou-se o tema.  Tal não significa, porém, que tenha ficado “revogado o direito correspondente” (para usar a expressão de Pontes de Miranda), mas, simplesmente, que doravante será possível a supressão daqueles requisitos pelo legislador infraconstitucional, o que não seria viável sem a modificação ora operada no plano constitucional.
                          Revogação ocorreria se houvesse manifesta incompatibilidade entre o novo dispositivo constitucional e a legislação ordinária (arts. 1.571 a 1.580 do Código Civil). Não é o que ocorre, porém, como se verá.
                           Pertinente invocar aqui a Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 4.657/42) que, em seu art. 2º, § 1º, dispõe:
                                      A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria que tratava a lei anterior. 
                            Por dois modos, pois, pode uma lei (ou dispositivo legal) ser revogada pela legislação posterior: (a) de forma expressa ou (b) tácita. Esta última modalidade, a seu turno, desdobra-se em outras duas:  (b.1) incompatibilidade entre o dispositivo anterior e o novo e (b.2) quando o novo regramento regular inteiramente a matéria que tratava a lei anterior.
                           No caso em exame, não houve, por evidente, revogação expressa, nem inteira regulação da matéria tratada no Código Civil. Resta, portanto, verificar se há incompatibilidade manifesta entre ambos os regramentos. Vale aqui o alerta de Maria Helena Diniz[9]:
(...) havendo dúvida, dever-se-á entender que as leis “conflitantes” são compatíveis, uma vez que a revogação tácita não se presume. A incompatibilidade deverá ser formal, de tal modo que a execução da lei nova seja impossível sem destruir a antiga.[10] (SEM GRIFO NO ORIGINAL)
                          Na mesma linha, com invejável clareza, complementa Eduardo Espínola[11]:
Os comentadores acentuam que, inquestionavelmente, se trata de uma incompatilidade formal, absoluta, de uma impossibilidade de aplicar, contemporaneamente, a uma relação jurídica, a lei antiga e a nova(SEM GRIFO NO ORIGINAL)
                                  Ora, com a maior reverência a respeitáveis (embora, a meu sentir, apressadas) opiniões em contrário, no caso não se flagra manifesta incompatibilidade entre a atual redação do § 6º do art. 226 da Constituição Federal e o Código Civil, na parte que disciplina os requisitos para obtenção do divórcio e da separação (judicial e extrajudicial).
                                  Isso porque a nova regra constitucional limita-se a declarar (simplesmente repetindo, aliás, o que já constava no § 1º do art. 1.571 do Código Civil) que “o casamento pode ser dissolvido pelo divórcio”, nada dispondo quanto à dispensa, ou não, de qualquer outro requisito.  Isso não impede, por evidente, que a lei ordinária estabeleça os requisitos para a obtenção do divórcio!  Não há, para usar a feliz expressão de Espínola, qualquer “impossibilidade de aplicar, contemporaneamente, a uma relação jurídica, a lei antiga e a nova”.
                           Diferente seria se o § 6º do art. 226 da CF contivesse a seguinte redação (ou assemelhada): 
Art. 226. (...)
(...)
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, independentemente de qualquer requisito.
                                Por fim, aqueles que sustentam ter sido revogada, no ponto, a legislação infraconstitucional trazem o argumento da “vontade do legislador”, que seria, como se vê na Exposição de Motivos do Projeto que deu origem à EC 66, direcionada à extinção dos requisitos temporais do divórcio e à abolição da figura da separação judicial.  Embora reconheça ter sido essa, com efeito, a intenção dos autores do Projeto, é preciso ter presente que o critério exclusivamente subjetivista de interpretação (mormente quando não encontra respaldo na linguagem da norma, como no caso) representa fator de insegurança jurídica. Como assinala, com ênfase, Adelino Augusto Pinheiro Pires[12]:
Falar, no entanto, em interpretação conforme a vontade da norma, quando uma norma constitucional não tem desígnio em si mesma, é um disparate, convenhamos. Falar, então, em interpretar a norma constitucional segundo a vontade do legislador, mostra-se com mais razão um contrassenso. A norma constitucional diz o que quer dizer; quanto ao que não quer dizer, se cala ("lex quod volet dixit; quod non volet tacet"). (SEM GRIFO NO ORIGINAL)
                       Nesse mesmo sentido é o que afirma Gilberto Schäfer, em seu já citado artigo:
É certo que já se amainaram as críticas ao processo de valorização da  gênese legislativa, aí incluídos os chamados trabalhos parlamentares (travaux parlamentaires), mas não há a possibilidade de se ultrapassar os limites da linguagem, sob pena de perder qualquer objetividade na interpretação.  E o perigo de não equilibrar subjetividade/objetividade é a possibilidade do arbítrio e da falta de controle e até mesmo em um excesso de voluntarismo que não pode mais ser aceito. É a linguagem do texto expresso na EC que deve nos dar a justa medida para a sua interpretação.(SEM GRIFO NO ORIGINAL)
                                    Em conclusão – embora admita que a linha de pensamento que sustento representa uma visão “politicamente incorreta”, em um tempo em que a versão midiática, até do direito, tende a preponderar – penso que, por não haver qualquer incompatibilidade entre o novo texto do § 6º do art. 226 da Constituição Federal e os dispositivos correspondentes do Código Civil, estes últimos subsistem em sua inteireza, até que sejam objeto de modificação por lei específica.
                           Fique claro, porém, que esta opinião não significa que me posicione ideologicamente contrário à evolução que se pretendeu com a Emenda Constitucional em foco, mas apenas que não aceito – só por ser favorável à tese – que sejam atropeladas regras comezinhas de interpretação do Direito.     










[1] EMENDA DO DIVÓRCIO: CEDO PARA COMEMORAR (http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=648 , consulta em 22.09.2010)
[2] SEPARAÇÃO ERA INSTITUTO ANACRÔNICO (http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=654)
[3] http://magrs.net/?p=13910, consulta em 22.09.2010
[4] http://magrs.net/?p=14064, consulta em 22.09.2010
[5] “O art. 144 da Constituição brasileira de 1934 correspondeu à resistência do catolicismo à dissolubilidade do vínculo conjugal. Não se pode dizer, portanto, (...) que o art. 144 não constituía direito diretamente aplicável, mas feixe de princípios normativos para o legislador: a lei que na vigência da Constituição permitisse o divórcio seria inconstitucional, e os juízes não a aplicariam” (Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. “Comentários à Constituição de 1967” – São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1968, Tomo VI, p. 305)
[6] Por ocasião dos debates que resultaram no texto da Constituição de 1934, a norma do parágrafo único do art. 144 foi objeto de muitas críticas, dentre as quais a que lhe dirigiu o Deputado Levi Carneiro, nos seguintes termos: “Não há, no entanto, dispositivo mais anódyno, mais ridículo, mais descabido que aquelle acima transcripto. É menos que uma dessas simples sugestões, ou recommendações, de que vae ficar cheia a nova Constituição, e que, ao menos em certos casos, se podem justificar. Não chega a tanto, porque manda que a lei civil faça o que ella já fez, e recomenda um detalhesinho miúdo de processo, que também várias leis já consagraram e se mostrou inefficiente para o fim em vista” . (Carneiro, Levi. “Pela Nova Constituição” – Rio de Janeiro: A. Coelho Branco Fº, 1936, p. 358) . 
                                    Apesar disso, a regra, proposta por Oswaldo Aranha, foi aprovada, com a seguinte justificativa de seu autor: “Ao elaborar o projecto, não quis referir os casos de annullação do casamento regulados pelo Código Civil. E não quis por que elles deram logar aos maiores escandalos, a factos verdadeiramente vergonhosos para a organização da família brasileira, cuja mulher, felizmente na opinião do ultimo escriptor que nos visitou e escreveu sobre nossas coisas, soffre a moléstia de ser honesta. De modo que, receiando que continuassem esses escândalos, quaes o de um juiz, numa cidade pequena, annullar casamentos com a maior desenvoltura, estabeleceu a regra de que haverá sempre appellação ex-officio das sentenças anulatórias de casamentos”. (Azevedo, José Afonso de Mendonça. “Elaborando a Constituição Nacional (Atas da Subcomissão elaboradora do anteprojeto 1932/1933 – Ed. fac-similar – Coleção História Constitucional Brasileira – Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial – 2004 – p. 703).
[7] Art 124 - A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado.

[8] Ob. Cit. – p. 306.
[9] Diniz, Maria Helena.  Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada – São Paulo: Saraiva – 2007, p. 72
[10] No mesmo sentido se manifesta Miguel Maria de Serpa Lopes: “Fôrça é notar que a revogação tácita ou indireta não se presume; para que uma lei nova se repute revogadora da anterior cumpre esbater-se uma incompatibilidade ou contrariedade formal e absoluta”. (Serpa Lopes, Miguel Maria de.  “Comentários à Lei de Introdução ao Código Civil”. São Paulo: Livraria Freitas Bastos S/A – 1959 - vol. I – p. 55)
[11] Espinola, Eduardo. “A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Comentada” . São Paulo: Livraria Editora Freitas Bastos S/A – 1943 – vol. I – p. 78.
[12] “A Inutilidade da Emenda Constitucional nº 66/2010”, in http://jus.uol.com.br/revista/texto/17355/a-inutilidade-da-emenda-constitucional-no-66-2010, acessado em 23.09.2010.

Um comentário:

  1. Caro Mestre parabenizo-o pela lição e mais acho que o processo de divórcio, quando litigiosos não ode ser decretado enquanto as causas que originou não tiverem esclarecidas e a obrigação de cada divorciando não ficar definida, inclusive a artilha dos bens que muitos juízes estão ignorando e deixando para a ação de divisão, após o divórcio, com o que não concordo.

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