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quarta-feira, 8 de junho de 2011

DOUTRINA - A POSSIBILIDADE DE O FILHO ADOTIVO DEMANDAR O RECONHECIMENTO DE SUA ORIGEM GENÉTICA


                                                           Luiz Felipe Brasil Santos

(publicado em janeiro.2006)


Este tema constitui uma das questões juridicamente mais tormentosas e, por isso, polêmicas do Direito de Família brasileiro. Trata-se de saber se um filho adotivo pode demandar o reconhecimento de sua filiação junto ao pai biológico e qual o reflexo do resultado favorável dessa demanda sobre a adoção. 

A questão não é inédita na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Há um conhecido e já antigo precedente, julgado pela 8ª Câmara Cível (AC 595 118 787), em 09 de novembro de 1995, sendo relator o então Des. Eliseu Gomes Torres.  Naquele acórdão, restou afirmada, inicialmente por unanimidade, a seguinte tese:

FILHA ADOTIVA. INVESTIGAÇÃO DA PATERNIDADE. POSSIBILIDADE. Os deveres erigidos em garantia constitucional à criança e o adolescente, na Carta de 1988, em seu art. 227, se sobrepõem, às regras formais de qualquer natureza e não podem ser relegados a um plano secundário, apenas por amor à suposta intangibilidade do instituto da adoção. Opor à justa pretensão da menor adotada em ver reconhecida a paternidade biológica, os embaraços expostos na sentença, é o mesmo que entender que alguém, registrado em nome de um casal, seja impedido de investigar sua verdadeira paternidade, porque a filiação é tanto ou mais irrevogável do que a adoção. No entanto, a todo o momento, deparamos com pessoas registradas como filhos de terceiro, que obtém o reconhecimento da verdadeira paternidade e têm, por conseqüência, anulado o registro anterior. Sentença cassada, para que outra seja proferida enfrentando o mérito da causa.

Sobrevindo embargos declaratórios (ED 595195116), surgiu a dissidência, pois o Des. Stangler Pereira conferiu-lhes efeito infringente, alterando seu voto na Câmara, por reconhecer contradição, para o fim de manter a sentença que extinguira o processo, afirmando a impossibilidade de investigar a paternidade biológica por parte do filho adotivo, diante da inviabilidade de desfazer-se a adoção. A maioria, entretanto, acolheu em parte os declaratórios, apenas para o fim de melhor explicitar os fundamentos da decisão, deixando claro o entendimento no sentido de que a investigatória poderia prosseguir, sem que, no entanto, fosse desfeito o vínculo criado pela adoção.

Diante do julgamento majoritário, foram interpostos embargos infringentes (EI 596037044). Apreciando-os, em julgamento realizado no dia 13 de setembro de 1996, o 4º Grupo Cível manteve, também por maioria (4 votos a 2), a decisão da 8ª Câmara Cível, afirmando que :

INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. FILHO ADOTIVO. POSSIBILIDADE JURÍDICA. O filho de mãe solteira, adotado na modalidade simples do antigo Código de Menores, presente que a nova ordem constitucional tornou todas as formas de adoção irrevogáveis, não precisa desconstituir a adoção, para investigar sua paternidade. Se não tinha pai conhecido por ocasião da adoção, nada impede que busque saber quem ele é, sem prejuízo do vínculo civil. Inteligência dos arts. 27 e 41, do ECA, e do art. 378, do Código Civil, sob inspiração do princípio da proteção integral da criança. Embargos Infringentes rejeitados.

Dessa decisão, resultou a interposição de Recurso Especial (RE nº 127.541-RS), julgado em 10 de abril de 2000 pela 3ª Turma do STJ, sendo relator o em. Min. Eduardo Ribeiro, no qual ficou assentado que:

Adoção. Investigação de paternidade. Possibilidade.
Admitir-se o reconhecimento do vínculo biológico de paternidade não envolve qualquer desconsideração ao disposto no artigo 48 da Lei 8.069/90. A adoção subsiste inalterada.
A lei determina o desaparecimento dos vínculos jurídicos com pais e parentes, mas, evidentemente, persistem os naturais, daí a ressalva quanto aos impedimentos matrimoniais. Possibilidade de existir, ainda, respeitável necessidade psicológica de se conhecer os verdadeiros pais.
Inexistência, em nosso direito, de norma proibitiva, prevalecendo o disposto no artigo 27 do ECA.
Como se vê, o tema não é novo. Entretanto, continua sem uma solução satisfatória. Por sinal, ao ensejo do julgamento dos aclaratórios suso mencionados (ED 595195116), o em. então Des. Sérgio Gischow Pereira já assinalava que:
O assunto, sem dúvida alguma, é complexo. Nesse particular, não me ocorre precedente jurisprudencial. Até a doutrina, na verdade, é muito hesitante a respeito do assunto, tanto que referi, no acórdão embargado, lição de Antonio Chaves a respeito do assunto em que ele cita opiniões diferentes dos autores a respeito do assunto.

Decorridos dez anos, o quadro doutrinário e jurisprudencial não é diferente. Algumas luzes, nesse entretempo, foram, no entanto, lançadas, especialmente pela produção doutrinária mais recente.

Uma premissa inicial é necessário deixar assentada: é que não está em jogo a possibilidade ou não de desconstituir a adoção, que é sabidamente irrevogável (art. 48 do ECA). Cuida-se exclusivamente de saber se, mantida a adoção, é viável o filho adotivo obter uma mera declaração de sua origem genética, mantendo incólume o vínculo parental de adoção.

Em pioneiro estudo sobre o tema, na doutrina nacional, Paulo Luiz Netto Lôbo[1] traça a distinção que atualmente se impõe entre o direito ao estado de filiação e direito ao conhecimento da origem genética. Pela riqueza da exposição, vale transcrever expressivo excerto desse trabalho:

12. Direito à origem genética como direito da personalidade, sem vínculo com o estado de filiação.
O estado de filiação, que decorre da estabilidade dos laços afetivos construídos no cotidiano de pai e filho, constitui fundamento essencial da atribuição de paternidade ou maternidade. Nada tem a ver com o direito de cada pessoa ao conhecimento de sua origem genética. São duas situações distintas, tendo a primeira natureza de direito de família e a segunda de direito da personalidade. As normas de regência e os efeitos jurídicos não se confundem nem se interpenetram.
Para garantir a tutela do direito da personalidade não há necessidade de investigar a paternidade. O objeto da tutela do direito ao conhecimento da origem genética é assegurar o direito da personalidade, na espécie direito à vida, pois os dados da ciência atual apontam para necessidade de cada indivíduo saber a história de saúde de seus parentes biológicos próximos para prevenção da própria vida. Não há necessidade de se atribuir a paternidade a alguém para se ter o direito da personalidade de conhecer, por exemplo, os ascendentes biológicos paternos do que foi gerado por dador anônimo de sêmen, ou do que foi adotado, ou do que foi concebido por inseminação artificial heteróloga. São exemplos como esses que demonstram o equivoco em que laboram decisões que confundem investigação da paternidade com direito à origem genética.
Em contrapartida, toda pessoa humana tem direito inalienável ao estado de filiação, quando não o tenha. Apenas nessa hipótese, a origem biológica desempenha papel relevante no campo do direito de família, como fundamento do reconhecimento da paternidade ou da maternidade, cujos laços não se tenham constituído de outro modo (adoção, inseminação artificial heteróloga ou posse de estado). É inadmissível que sirva de base para vindicar novo estado de filiação, contrariando o já existente.


Com efeito, no atual estágio do direito brasileiro, resulta evidente a diferenciação traçada pelo ilustre doutrinador entre o direito da personalidade, inerente e inato à pessoa, em seu âmbito individual e personalíssimo, e o reconhecimento ou contestação do estado de filiação, que pode ou não ter origem biológica.  O primeiro tem assento constitucional, no resguardo ao direito à vida, e não visa necessariamente criar o vínculo jurídico de filiação. O segundo fundamenta-se no Direito de Família e tem por escopo estabelecer o vínculo de parentesco, do qual decorrerão os direitos correlatos. 

Nessa perspectiva - embora enfatizando a irrevogabilidade da adoção, sobretudo quando realizada já sob a égide do Estatuto da Criança e do Adolescente, ou ainda na vigência da legislação menorista anterior, mas sob a modalidade plena - tenho que não pode ser sonegado ao filho adotivo o direito ao conhecimento de sua origem genética. Nesta senda, aliás, foi que se orientou o Eg. Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial antes referenciado (Resp. nº 127.541-RS).  

É certo que o direito de personalidade ao conhecimento da origem genética poderá encontrar sério óbice na jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal ao ensejo do julgamento do HC-71.373-RS (DJ de 22.11.96), sendo relator o Ministro Marco Aurélio, que deixou assentado:

INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE - EXAME DE DNA - CONDUÇÃO DO RÉU “DEBAIXO DE VARA”. Discrepa, a mais não poder, de garantias constitucionais implícitas e explícitas - preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da inexecução específica e direta de obrigação de fazer - provimento judicial que, em ação civil de investigação de paternidade, implique determinação no sentido de o réu ser conduzido ao laboratório, “debaixo de vara”, para coleta do material indispensável à feitura do exame DNA. A recusa resolve-se no plano jurídico-instrumental, consideradas a dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que voltadas ao deslinde das questões ligadas à prova dos fatos.

Como se vê, a nossa Corte Suprema decidiu pela inviabilidade de impor ao investigado a realização do exame de DNA, por ofender tal determinação princípios fundamentais como a “preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da inexecução específica e direta de obrigação de fazer”.

Ocorre que assim temos configurada típica colisão de princípios. De um lado, os que garantem ao investigado seu direito à intangibilidade corporal, como frisado. De outro, o direito de personalidade do investigante ao conhecimento de sua origem genética, que, por certo, jamais poderá ser efetivamente satisfeito se a eventual procedência de seu pleito resultar do sistema de presunções estabelecido agora pelos arts. 231 e 232 do Código Civil, como pela Súmula 331 do STJ, pois somente a perícia de DNA é apta a definir, de forma real, a verdade genética. A solução hermenêutica se imporia pela ponderação de princípios.  Como salienta Maria Celina Bodin de Moraes[2]:

 (...) abusa de seu direito aquele que exercitando um determinado direito subjetivo, embora sem contrariar qualquer específico dever normativo, afasta-se do interesse (rectius, valor) que constitui a razão de ser de sua tutela legislativa. Desta forma, o exercício de um direito não encontra apenas limites estabelecidos por deveres ou proibições legislativamente impostos mas, principalmente, os limites impostos pelos valores que têm na Constituição a sua referência normativa.
O abuso ocorre, pois, especialmente, quando o exercício do direito, anti-social, compromete o gozo dos direitos de terceiros, gerando objetiva desproporção, do ponto de vista valorativo, entre a utilidade do exercício do direito por parte de seu titular e as conseqüências que outros têm que suportar.
Não se duvida que a incolumidade física abranja o direito de recusa a submeter-se a tratamento médico ou exame de qualquer espécie, sem o consentimento expresso de seu titular, não podendo o indivíduo ser compelido a realizá-los.56
O direito à integridade física configura verdadeiro direito subjetivo da personalidade, garantido constitucional-mente, cujo exercício, no entanto, se toma abusivo se servir de escusa para eximir a comprovação, acima de qualquer dúvida, de vínculo genético, a fundamentar adequadamente as responsabilidades decorrentes da relação de paternidade.
A perícia compulsória se, em princípio, repugna àqueles que, com razão, vêem o corpo humano como bem jurídico intangível e inviolável, parece ser providência necessária e legítima, a ser adotada pelo juiz quando tem por objetivo impedir que o exercício contrário à finalidade de sua tutela prejudique, como ocorre no caso do reconhecimento do estado de filiação, direito de terceiro correspondente à dignidade de pessoa em desenvolvimento, interesse este que é, a um só tempo, público e individual.
Aos que temem a instauração de precedente, a ser evitado a qualquer custo, pode se opor a consideração de que, na nossa ordem constitucional, o princípio da dignidade da pessoa humana estabelece sempre os limites intransponíveis, para além dos quais há apenas ilicitude.

Não tenho dúvida em afirmar, nessa linha, que, ponderados os princípios, não há motivação possível para a negativa do investigado em se submeter à perícia genética, e que, se ela vier a ocorrer, plenamente justificável sua condução coercitiva para tal fim, com o quê se resguardaria o valor maior assegurado pela ordem jurídica, diretamente vinculado à dignidade da pessoa humana daquele que busca o conhecimento de suas origens.

Poder-se-ia contrapor que não é possível ação declaratória de origem genética, pois, conforme o art. 4º, inc. I, do CPC, somente é viável obter declaração de “relação jurídica”, jamais de mero fato. Com efeito, essa é a interpretação corrente na doutrina e na jurisprudência. Entretanto, cabe indagar: ao se reconhecer a origem genética de alguém estar-se-á declarando mero fato?  Essa questão remete-nos à noção de “relação jurídica” que, sinteticamente pode ser definida como “relação entre pessoas, ou entre pessoa e coisa, regulada pelo direito”[3].  Ou seja, no conceito de relação jurídica está sempre contida a noção de bipolaridade, pois não há relação jurídica de alguém consigo mesmo. E, além da existência de dois pólos (pessoa-pessoa ou pessoa-coisa) devem daí advir conseqüências previstas no ordenamento jurídico. É o que ensina Pontes de Miranda, quando afirma que “relação jurídica básica é o resultado da juridicização de relação inter-humana”[4].

Ora, é certo que a relação de adoção rompe quase todos os vínculos com a família consangüínea. É o que dispõe o art. 1.626 do Código Civil, que, entretanto, excepciona a preservação dos impedimentos matrimoniais. Tem-se aí, portanto, a configuração de uma relação jurídica obstativa, suficiente para oportunizar o ajuizamento de uma ação declaratória de origem genética.

Em conclusão, tem-se como viável a ação que objetive a mera declaração de origem genética, promovida por filho adotivo, sem desconstituição do vínculo parental estabelecido pela adoção.   


Referências bibliográficas:

BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil. v. 1. Rio de Janeiro, Forense, 1981.

BODIN DE MORAES, Maria Celina. Recusa à realização do exame de dna na investigação de paternidade e direitos da personalidade. Disponível em: http://www.gontijo-familia.adv.br/. Acesso em 10 ago. 2005.


LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética. Disponível em:  http://www.direitodafamilia.net. Acesso em 10 ago 2005.

MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado: parte geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970.


* Desembargador do TJRS. Presidente do IBDFAM-RS. Professor da Escola da Magistratura da AJURIS.
[1] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética. Disponível em:  http://www.direitodafamilia.net. Acesso em 10 ago 2005.
[2] BODIN DE MORAES, Maria Celina. Recusa à realização do exame de dna na investigação de paternidade e direitos da personalidade. Disponível em: http://www.gontijo-familia.adv.br/. Acesso em 10 ago. 2005.

[3] BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil. v. 1. Rio de Janeiro, Forense, 1981. p. 64.
[4] MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado: parte geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970. p. 118. 

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