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quarta-feira, 8 de junho de 2011

DOUTRINA - UNIÃO ESTÁVEL, CONCUBINATO E SOCIEDADE DE FATO : UMA DISTINÇÃO NECESSÁRIA


                                                 
Luiz Felipe Brasil Santos


(publicado em agosto.2004)

Sumário: 1. Introdução - 2. Perspectiva histórica - 3. Distinções - 3.a. União estável x concubinato - 3.b. União estável x sociedade de fato - 4. Conclusões - 5. Bibliografia.


1.      Introdução

O trato científico de qualquer tema exige rigor conceitual, requisito inafastável para assegurar aos interlocutores que seu discurso tem por foco o mesmo objeto. Não é o que se constata, entretanto, na abordagem da união estável. Por razões históricas perfeitamente identificáveis, ainda hoje se percebe entre os operadores do Direito, tanto na doutrina como na jurisprudência, uma lamentável despreocupação quanto ao emprego preciso dos termos união estável, sociedade de fato e concubinato, o que em nada contribui para a correta percepção da problemática correlata. Na prática forense ainda se mantém a tradição de nominar as ações que objetivam o reconhecimento de uniões estáveis como ações de dissolução de sociedade de fato, numa completa barafunda terminológica.

O presente estudo propõe-se a colaborar para o estabelecimento dessa imperiosa distinção.

2. Perspectiva histórica       
                                                                      
Na Roma clássica o casamento era um ato privado, sem intervenção do Estado. Era não-escrito e nem sempre solene. Quando havia cerimônia, era de caráter exclusivamente religioso. Na hipótese contrária, a existência do casamento era demonstrada apenas pelas circunstâncias, pela posse do estado de casados.

Na modalidade do casamento cum manu (em que a mulher desvinculava-se da família de origem, aderindo à do marido, ficando sob o poder deste), reservada aos cidadãos romanos, havia três formas, a saber: (1) a confarreatio, cerimônia religiosa privativa dos patrícios, realizada perante um sacerdote e dez testemunhas, na qual os noivos ofereciam a Júpiter um pão de trigo, panis farreus, que ambos comiam juntos, (2) a coemptio, forma leiga de casamento privativa dos plebeus, onde se realizava uma solenidade que simulava a venda simbólica da mulher ao marido e (3) o usus, que correspondia a um casamento de fato, estabelecido pela convivência ininterrupta do homem e da mulher por mais de um ano, na posse do estado de casados, que, automaticamente, fazia nascer o poder marital (manu), a não ser que, a cada período de um ano, a mulher passasse três noites fora do lar conjugal, caracterizando o que era denominado trinoctii usurpatio, afastando a possibilidade de configurar o usus[1]. Sobre essa modalidade de casamento observa Clóvis Beviláqua[2]:

O usus era simplesmente a usucapio aplicada à posse da mulher. Se a posse durava um ano, a propriedade estava adquirida, como se se tratasse de qualquer objeto móvel, e a mulher estava sob a manus do marido. Mas era-lhe facultado interromper a continuidade da posse, pernoitando fora do teto comum, por três noites seguidas durante o ano. 

Esta forma de matrimônio foi a que por primeiro veio a desaparecer, não sendo mais conhecida a partir do século II da era cristã[3]. No entanto, temos aí, provavelmente, o mais remoto antepassado jurídico do instituto hoje conhecido como união estável, com todos os requisitos atualmente exigidos para sua configuração (diversidade de sexos, duração, continuidade, publicidade, intenção de constituir família).

Quanto ao concubinato (concubinatus, de cum cubere, deitar-se com), era uma forma de união de fato, em geral duradoura, sem a intenção de formar família. Era considerado uma forma inferior de relacionamento (sem a affectio maritalis e a honor matrimonii). Não era proibido nem atentatório à moral. Os filhos, no entanto, eram considerados ilegítimos, permanecendo vinculados à família materna. A partir do Imperador Constantino (em 326 DC), o concubinato passou a ser considerado imoral, até que Leão, o Sábio (886-912 DC), o aboliu da legislação[4].

A Igreja Católica dos primeiros tempos foi tolerante com o concubinato não-adulterino[5], tendo o Direito Canônico, inicialmente, até mesmo conferido alguns efeitos limitados, buscando garantir a monogamia e a estabilidade do casal, sem, entretanto, institucionalizar o concubinato. A reação contra o concubinato por parte da Igreja deveu-se sobretudo ao fato de que os próprios padres – e até mesmo Papas – passaram a ter concubinas. A condenação final do concubinato surgiu no Concílio de Trento (1563), que tornou obrigatória a celebração formal do casamento, na presença do padre e testemunhas, com registro escrito. Os concubinos passavam a ser apenados com excomunhão se, depois de serem advertidos por três vezes, ainda persistissem no relacionamento informal. Tal postura espelhava a reação contra a Reforma Protestante, que então ameaçava o poder da Igreja. Por isso foi reforçada a noção do casamento como um dos sete sacramentos e, assim, indissolúvel, o que teve forte influência sobre o Código de Napoleão (1804) e, por reflexo, nos Códigos Civis modernos.

Até o século XVI a formação e organização da família era normatizada exclusivamente pela Igreja Católica. A partir daí, a Reforma Protestante, trazendo a distinção entre o mundo espiritual e o secular, possibilitou a separação entre Estado e Igreja, ensejando que o casamento pudesse ser regrado pelas leis do Estado. Instituiu-se, então, o casamento civil, afastado da noção de sacramento, tendo sido a Holanda, em 1580, o primeiro pais a regrá-lo, seguindo-se a Inglaterra (1653) e a França (1792).

No Brasil, as Ordenações Filipinas (século XVI) reconheciam no concubinato puro (entre pessoas desimpedidas) uma forma de casamento de fato, que se configurava na circunstância de um homem e uma mulher viverem juntos “em pública voz e fama de marido e mulher, por tanto tempo que, segundo direito, baste para presumir matrimônio entre eles, posto se se não provem as palavras do presente” (Quarto Livro das Ordenações, Título XLVI, 2)[6] , o que dava direito à meação dos bens adquiridos na constância da relação. Nada mais era do que o antigo usus romano e, hoje, união estável. Sobre essa regra anota Candido Mendes de Almeida[7]:

Por esta disposição o casamento presumido tinha todos os effeitos civis; mas era uma disposição morta, e que nunca vigorou entre nós, e nem podia vigorar depois da reforma do Concilio Tridentino; máxime sabendo-se que o casamento clandestino não os tinha, e aliás em melhores condições que este presumido casamento, que era um verdadeiro concubinato.

Ao lado dessa modalidade informal de casamento, as Ordenações admitiam validade ao casamento religioso e ao contrato particular, assinado por duas testemunhas. O casamento civil, no entanto, ainda não era conhecido.

Somente com o Decreto 181, de 24 de janeiro de 1890, é que aqui veio a ser instituído o casamento civil, formalizando-se, a partir daí, sob as leis do Estado, a constituição da família, e deixando de reconhecer efeitos jurídicos às relações familiares de fato, bem como ao casamento religioso e ao casamento por contrato particular. Com efeito, como assinala Edgard de Moura Bittencourt[8]:

a união irregular só desponta como elemento de negação jurídica, a partir da instituição do casamento civil sob a forma legal, quando a Holanda a criou no século XVI e nos séculos posteriores acentuou-se a tendência de legislar-se sobre essa matéria. Anteriormente a essa conquista de institucionalização do matrimônio, as ligações estranhas a este não se apresentavam como problema: existia uma disciplina a respeito, tal como no Direito Romano, em que o concubinato era considerado casamento inferior, de segundo grau, e como no regime das Ordenações Filipinas, em que a ligação extra-matrimonial prolongada gerava direitos em favor da mulher.

Nessa linha, o Código Civil de 1916 ignorou por inteiro as uniões de fato entre pessoas desimpedidas, cuidando exclusivamente de cercar de sanções o concubinato adulterino, no objetivo de resguardar o patrimônio da família regularmente constituída pelo casamento. Assim, tratou de impedir doações do concubino casado ao seu “cúmplice” (art. 1.177), de vedar que este fosse instituído beneficiário em seguro de vida (art. 1.474) e de proibir que a concubina de testador casado fosse nomeada herdeira ou legatária (art. 1.719, III).  

Foi por meio da legislação previdenciária que iniciou a tomar corpo a atribuição de efeitos jurídicos às uniões informais.  Isso se explica pelo fato de que nesse âmbito era desnecessário questionar a regularidade formal da instituição familiar, importando apenas o conceito de dependência econômica. O primeiro diploma legal a se ocupar do tema foi o Decreto nº 22.872, de 28 de junho de 1933, que criou o Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Marítimos, permitindo que, na falta de herdeiros, o trabalhador incluísse como beneficiária determinada pessoa que vivesse sob sua vinculação econômica. Em 1934, o Decreto 24.627, de 10 de julho, introduziu no ordenamento positivo brasileiro o termo companheira, possibilitando que fosse indicada pelo trabalhador como dependente, desde que declarada como tal na Carteira Profissional.

A jurisprudência, porém, é que gradualmente foi lapidando o conceito atual de união estável, como assinala Antonio Chaves[9].  

Primeiro, estabeleceu-se a distinção entre concubina e companheira, para fins de excluir esta última das regras proibitivas dos arts. 1.177, 1.424 e 1.719, III, do Código Civil de 1916. Assim, concubina passou a ser considerada exclusivamente aquela mulher que se relacionava com homem casado, na constância do matrimônio, ao passo que companheira era a que mantinha relacionamento com homem desimpedido ou, ao menos, separado de fato. A primeira integrava um concubinato impuro (com presença de impedimento matrimonial entre os seus integrantes), enquanto a segunda compunha um concubinato puro. Nessa linha situou-se conhecido aresto do STF, relator o Min. Antonio Nader, que, no julgamento do RE nº 83.930, deixou assim assentado:

A concubina seria aquela mulher com quem o cônjuge adúltero tem encontros periódicos fora do lar. A companheira seria aquela com quem o varão, separado de fato da esposa, ou mesmo de direito, mantém convivência ‘more uxorio’.[10]

Iniciava a desenhar-se aí o reconhecimento jurisprudencial de que o Código Civil de 1916 cuidava de lançar sua censurabilidade exclusivamente sobre o concubinato adulterino. Exemplo dessa distinção, na jurisprudência do TJRS, encontra-se em antigo julgado de que foi relator o Des. Milton dos Santos Martins, onde ficou estabelecido que:

Não incide a proibição dos arts. 1.474 e 1.177 do CC se o casamento já não existe mais como comunhão de vida e não há impedimento em beneficiar a nova companheira evidente.
(AC 588039313, j. em 16.08.88)[11]

Ademais, não havendo no ordenamento jurídico possibilidade de aplicar-se às relações fáticas as regras relativas à família, visto que somente o casamento é que permitia a formação dessa entidade, os tribunais brasileiros, buscando inspiração no que já se fazia na França desde meados do século XIX, passaram a afirmar que duas pessoas vivendo juntas durante certo tempo, com colaboração recíproca na aquisição do patrimônio, formavam uma sociedade de fato, figura que, com o uso da analogia, foi trazida do Direito das Obrigações (art. 1.363 do CC/16 – art. 983 do CC/02) para regrar essas situações, visando, em última análise, vedar o enriquecimento ilícito. Não obstante, a sociedade de fato entre concubinos difere das demais (puramente obrigacionais), porque ao início da relação eles não têm um objetivo social definido, o que só vem a surgir no curso do tempo, na medida em que se identifique na relação a affectio societatis (elemento subjetivo).

A solidificação dessa construção pretoriana acabou por resultar, no ano de 1963, na Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal, onde ficou assentado que “comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”. A redação desse enunciado mostra que o que se reconhecia como hábil para dar direito à partilha dos bens comuns não era apenas o concubinato (resultante da convivência mais ou menos duradoura entre homem e mulher), mas, sim, a sociedade de fato, evidenciada pelo esforço comum que se agregava a essa convivência. Nesse sentido, o próprio STF, com precisão cirúrgica, assinalou que “a sociedade de fato, e não a convivência ‘more uxorio’, é o que legitima a partilha dos bens entre os concubinos”[12].

Nos primeiros tempos o conceito do que fosse esforço comum era bastante restritivo, entendendo-se como tal exclusivamente a contribuição direta para a aquisição dos bens, quando ambos os companheiros desempenhassem atividade remunerada fora do lar, o que, à época, notoriamente não era comum ocorrer com as mulheres. Em razão disso, a partilha dos bens era feita na proporção do aporte de cada parceiro.

Por isso, os direitos das mulheres que não lograssem demonstrar essa modalidade de contribuição estavam vinculados a uma pretensão de natureza indenizatória por serviços prestados. Serviços domésticos, sinale-se – no cuidado da casa e dos filhos –, pois os sexuais não seriam passíveis de remuneração lícita. A analogia aqui era com o contrato de prestação de serviços (art. 1.216 do CC/16 – art. 594 do CC/02), outra figura do direito obrigacional trazida para o trato das relações fáticas.

Mais próximo da Constituição Federal de 1988 alguns julgados mais liberais vinham admitindo a contribuição indireta – a mesma que antes somente ensejava indenização por serviços prestados – como suficiente para dar direito à partilha dos bens adquiridos, o que já constituía um prenúncio da admissão das uniões fáticas (uniões estáveis) como entidades familiares. Esse passo no sentido do reconhecimento de valor econômico à atividade doméstica foi extremamente relevante. Conforme Rodrigo da Cunha Pereira[13], o reconhecimento jurisprudencial de que o esforço comum apto a propiciar aquisição de patrimônio não necessariamente precisa ser financeiro constitui um marco revolucionário:   

Ora, isso é reconhecer e firmar uma posição de mudança em que as relações concubinárias deixam de ser tratadas como uma sociedade de fato, no sentido comercial, para serem reconhecidas como entidade familiar, que afinal a Constituição de 1988 veio positivar, e as Leis nº 8971/94 e nº 9.278/96 e o Novo Código Civil refletem essa revolução. O significado e a importância da contribuição indireta estão muito além das relações decorrentes de uma união estável. Esse entendimento significa o reconhecimento do necessário suporte doméstico, historicamente dado pelas mulheres.    

Em 1988, a “Constituição Cidadã”, em seu art. 226, § 3º, afirmou ser a união estável entre homem e mulher uma entidade familiar merecedora da proteção estatal, devendo ser facilitada sua conversão em casamento. Seguiram-se, de modo pouco sistemático, vale assinalar, as leis regulamentadoras: a. Lei 8.971, de 29 de dezembro de 1994, que dispunha sobre o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão e b. Lei 9.278, de 10 de maio de 1996, que regulava o § 3º do art. 226 da Constituição Federal, redefinindo os requisitos da união estável, prevendo direitos e deveres entre os companheiros (chamados ali de conviventes), estabelecendo a presunção de comunhão dos bens adquiridos onerosamente na constância da relação, estatuindo expressamente o direito a alimentos, estendendo aos companheiros o direito real de habitação, dispondo sobre a conversão em casamento e firmando a competência das Varas de Família para dirimir as controvérsias relativas ao instituto.
           
Finalmente, o Código Civil de 2002, como não poderia deixar de ser, chamou a si a tarefa de regulamentar a união estável, dando seus contornos no art. 1.723 e dispondo no art. 1.727 acerca da definição de concubinato, impondo, a partir daí, uma nítida distinção entre esses institutos.  

3.      Distinções  

3.a. União estável x concubinato

Como antes referido, na Roma antiga o concubinato era uma forma de união de fato, em geral duradoura, sem a intenção de formar família.

Na atualidade, conforme assinala Rodrigo da Cunha Pereira[14],  o conceito de concubinato “tem evoluído bastante e, na verdade, há até uma certa dificuldade entre os autores em delinear precisamente essa idéia”.

Tradicionalmente, na doutrina sempre predominou o entendimento de que essa expressão possui um sentido lato e outro restrito. Lato sensu, concubinato é um gênero que abrange duas espécies: o “puro”, ou stricto sensu (entre pessoas desimpedidas, que formam uma família de fato), e o “impuro” (adulterino ou incestuoso – portanto, entre pessoas que possuem algum impedimento matrimonial).

Em sua clássica obra sobre concubinato, Álvaro Villaça Azevedo[15] sustenta que este, em sua forma pura, quando se apresenta “como uma união duradoura, sem casamento, entre homem e mulher” , constitui a “família de fato”, conceito que introduziu em nosso sistema jurídico e que culminou por ser consagrado na Constituição de 1988 sob a denominação de união estável.  

No artigo 1.727 o Código Civil trata de definir concubinato como a relação não eventual entre o homem e a mulher, impedidos de casar. Não há dúvida de que o objetivo da lei é distinguir e extremar com nitidez os conceitos, introduzindo em nosso sistema uma noção legal de ambos os institutos, de forma a não permitir que se continue a empregá-los indistintamente, como até agora, em geral, tem sido feito, de modo especial no cotidiano forense e na jurisprudência.

A conceituação contida nesse dispositivo, entretanto, não está completa. Ocorre que, conforme dispõe o § 1º do art. 1.723, é possível constituir união estável mesmo sendo casado um ou ambos os companheiros, desde que esteja separado de fato ou judicialmente. Logo, contrário senso, para existir concubinato é preciso que, quando o impedimento matrimonial resultar de casamento, o parceiro casado esteja na constância fática da sociedade conjugal. De outro modo – desde que, é claro, se façam presentes os demais requisitos da relação – poderá constituir uma união estável.  Tal exceção legal consagra a corrente jurisprudencial de há longo tempo existente que distinguia a companheira da concubina, como antes assinalado.

Para o Código Civil, portanto, concubinato é apenas o que doutrinariamente se conhece como concubinato impuro (adulterino ou incestuoso). O puro – onde não há impedimento matrimonial – identifica-se com a união estável, e é assim tratado no plano legislativo.

Importante ressaltar que a circunstância de o diploma civil definir concubinato não significa que esteja a reconhecê-lo como entidade familiar, o que seria até mesmo inconstitucional, na medida em que como tal só é admitida a união estável (art. 226, § 3º, CF), ao lado do casamento e da família monoparental . O concubinato stricto sensu continua a ser uma relação espúria em nosso ordenamento. Tanto assim que nenhum direito é reconhecido aos concubinos e, quando o Código se refere a esse instituto – como, aliás, já ocorria no Código Civil anterior – o faz apenas para cercá-lo de restrições. Assim, a concubina do testador casado não pode ser nomeado herdeira nem legatária (art. 1.801, III – correspondente ao 1.719, III, do Código anterior) e “a doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice pode ser anulada pelo outro cônjuge, ou por seus herdeiros necessários, até 2 (dois) anos depois de dissolvida a sociedade conjugal” (art. 550 – correspondente ao art. 1.177 do Código anterior).

3.b.  União estável x sociedade de fato

Outra distinção que se impõe estabelecer é entre união estável e sociedade de fato, vez que, embora diversos os institutos, lamentavelmente continuam os conceitos a ser freqüentemente embaralhados, tanto na doutrina como na jurisprudência, com enorme prejuízo à adequada compreensão dos fenômenos.

Tal dificuldade foi objeto de debate no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao ensejo do julgamento dos Embargos Infringentes nº 70003896099, em 10 de maio de 2002, pelo 4º Grupo Cível.  Na ocasião, o Des. José Carlos Teixeira Giorgis frisou que lhe causava preocupação “a constância em enquadrar tais relações como sociedade de fato, o que dificulta a solução”.  Na mesma oportunidade, salientei:

apesar de termos o instituto da união estável desde 1988, a boca torta pelo cachimbo dos operadores jurídicos ainda continua, equivocadamente, utilizando as duas expressões indistintamente: sociedade de fato e união estável como se fossem sinônimos, e não são. Tanto é que 99% das ações com que nos deparamos aqui costumam ser denominadas na inicial como dissolução de sociedade de fato, e nós conhecemos como declaratória de união estável. Por quê ? Porque dissolução de união estável é um nome que, em poucas palavras, contém dois erros: primeiro, não é dissolução, porque a dissolução já se deu pelo fato, ou seja, ela se dissolveu pela mesma forma como se constituiu, pelo fato. (...) Segundo, porque não é sociedade de fato, é união estável. Então, essas ações, na verdade, são declaratórias de união estável, e não dissolução de sociedade de fato.[16]    

Com efeito, essa confusão se explica pelo fato de o instituto da união estável ter sido concebido e gestado no ventre da sociedade de fato, a partir da evolução registrada, especialmente na jurisprudência ,  em torno da aplicação dessa figura, tipicamente de direito obrigacional, às relações fáticas entre homem e mulher, como forma de evitar o enriquecimento sem causa, consoante já destacado.

No entanto, a partir do histórico momento em que a Constituição de 1988, em seu art. 226, § 3º, trouxe para o universo jurídico o conceito de união estável, conferindo-lhe o status de entidade familiar, não mais se pode aceitar a utilização indistinta dos termos sociedade de fato e união estável.

Ocorre que sociedade de fato, como antes assinalado, é um conceito de Direito das Obrigações (arts. 1.363 e segs. do CC/16 e art. 983 e segs. do CC/02) utilizado pela jurisprudência para o tratamento do fenômeno das uniões fáticas, ao tempo em que não havia fundamento jurídico para afirmar-se nelas a existência de uma família.

Por sua vez, união estável é um conceito de Direito de Família, que chama para si outros critérios de valor e, por decorrência, atrai diversas conseqüências jurídicas. Como já frisava Carlos Alberto Menezes Direito[17], no já longínquo ano de 1991,
se a união estável é entidade familiar, como determinado pela Constituição, não se pode mais tratar a união entre o homem e a mulher, sem o ato civil do casamento, como sociedade de fato, ou concubinato, eis que não se trata mais de mancebia, de amasiamento, mas de entidade familiar.
Assim, no que diz respeito ao patrimônio adquirido no curso do relacionamento, o tratamento que se dá a cada instituto é bem diverso. Diante de união estável, com o preenchimento dos requisitos do art. 1.723 do Código Civil, aplicam-se as regras do regime da comunhão parcial, o que dispensa qualquer cogitação em torno da contribuição de cada parceiro na formação do patrimônio. Caso contrário – isto é, se não preenchidos os requisitos dessa entidade familiar –, poder-se-á, eventualmente, estar diante de uma sociedade de fato, o que exige, por sua vez, para caracterizar-se, a prova da contribuição (até indireta) para a formação do patrimônio, nos moldes do enunciado sumular nº 380 do STF.

Nestas condições, mesmo em uma relação de concubinato – onde se faz presente impedimento matrimonial, e, por isso, não há união estável – é possível, em tese, que seja comprovada a existência de uma sociedade de fato, desde que demonstrada a contribuição para a aquisição do patrimônio, ou parte dele. Se feita tal prova, cabível será a partilha proporcional à participação de cada concubino (porque de relação obrigacional se trata). Nessa situação, como assinala Arnaldo Rizzardo[18], “é evidente a necessidade de configuração de um patrimônio distinto daquele formado na constância da convivência com o cônjuge”. Não se cogita aí, entretanto, de regime de bens, nem há que se falar em presunção de condomínio ou comunhão. A competência, ademais, será de Vara Cível, e não de Vara de Família.

Em se tratando de entidade familiar, aos companheiros integrantes de uma união estável é atribuído direito a alimentos (art. 1.694, do CC), decorrência do dever de assistência (art. 1.723), é instituído o regime da comunhão parcial (art. 1.725),  e se forma o direito sucessório (art. 1.790), o que não cabe no âmbito de uma sociedade de fato ou de um concubinato.
Outros efeitos atribui o Código Civil à união estável, e que não são extensivos aos integrantes das demais espécies de relação enfocadas. A saber: 1. art. 1.562:  dispõe sobre ação cautelar de separação de corpos, antecedendo a dissolução de união estável; 2. art. 1.595: contempla a formação de parentesco por afinidade em razão da união estável; 3. art. 1.618: permite a adoção pelos companheiros, desde que um deles tenha 18 anos de idade; 4. art. 1.626, parágrafo único: prevê a adoção do filho do outro pelo companheiro; 5. art. 1.636: estabelece que o pai ou a mãe que contrai novas núpcias ou união estável, assim como pai ou mãe solteiros que se casarem ou formarem união estável, não perdem o poder familiar; 6. art. 1.694: regula o direito dos companheiros a alimentos; 7. art. 1.708: reza que  o credor de alimentos que vier a formar união estável, perde o direito a tal verba; 8. art. 1.775: afirma que o cônjuge ou companheiro é, de direito, curador do outro, observadas as condições legais; 9. art. 1.790 e incisos: regula o direito sucessório dos companheiros; 10. art. 1.797: assegura ao cônjuge ou companheiro o direito à administração da herança; 11. art. 1.801, inc. I: impossibilita que o cônjuge ou companheiro da pessoa que escreveu o testamento seja nomeado herdeiro ou legatário; 12. art. 1.802, parágrafo único: presume que o cônjuge ou companheiro é pessoa interposta; 13. art. 1.814: assevera que o cônjuge ou companheiro que tiver tentado ou consumado homicídio contra o outro, é excluído da sucessão do falecido; 14. art. 1.844: dispõe que não sobrevivendo cônjuge ou companheiro, nem parente sucessível, a herança vai para o ente público; 15. art. 1.963, III: relaciona como causa de deserdação relações ilícitas com a mulher ou  companheira do filho ou a do neto, ou com o marido ou companheiro da filha ou da neta.   

4.      Conclusões

a.  desde o momento em que a união estável ganhou dignidade constitucional como forma de constituir família, vindo a ser posteriormente regrada na legislação ordinária, ganhou autonomia conceitual, não cabendo mais qualquer referência a esse instituto com a denominação de sociedade de fato;

b.  por igual, apesar de a união estável identificar-se com a figura doutrinariamente conhecida como “concubinato puro”, constituindo assim uma espécie do  gênero “concubinato”, o Código Civil atual estabelece entre ambos nítida distinção, que se impõe aos lidadores do Direito;

c. em decorrência, já é hora de os operadores jurídicos em geral tratarem com a indispensável precisão conceitual esses três institutos, pois muito diversos são os seus efeitos, não sendo mais de admitir-se ações denominadas de “dissolução de sociedade de fato” quando que se busca, em verdade, é a declaração de uma união estável, com as seqüelas correlatas.   

5. Bibliografia

AZEVEDO, Álvaro Villaça. União estável, antiga forma do casamento de fato. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 701, 1994.
______. Do concubinato ao casamento de fato. Belém: CEJUP, 1986.
BEVILÁQUA, Clóvis. Direito de Família. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.
BITTENCOURT, Edgard de Moura. Concubinato. São Paulo: Universitária de Direito, 1975.
CHAVES, Antonio. Do concubinato à família de fato. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 623, p. 13-17, 1987.
DIREITO, Carlos Alberto Menezes. Da união estável como entidade familiar. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 667, p. 17-23, 1991.
LOURENÇO DIAS, Adahyl. A concubina e o direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1988.
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REVISTA DE JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Porto Alegre, nº 224, 2003.
REVISTA DE JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Porto Alegre, nº 132, 1989.
REVISTA TRIMESTRAL DE JURISPRUDÊNCIA. Brasília, v. 79, p. 281-289, 1977.
RIZZARDO, Arnaldo. Direito de família. Rio de Janeiro: Aide, 1994, v. 1.


[1] AZEVEDO, Álvaro Villaça. União estável, antiga forma do casamento de fato. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 701, 1994, p. 07.
[2] BEVILÁQUA, Clóvis. Direito de Família. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976, p. 49.
[3] AZEVEDO, Álvaro Villaça. Do concubinato ao casamento de fato. Belém: CEJUP, 1986, p. 119-123.
[4] Idem, op. cit., p. 21.
[5] LOURENÇO DIAS, Adahyl. A concubina e o direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 29.
[6] MENDES DE ALMEIDA, Cândido. Código filipino ou Ordenações e Leis no Reino de Portugal. 14. ed. Rio de Janeiro: Typographia do Instituto Philomathico, 1870,  p. 834.
[7] Op. cit., p. 834.
[8] BITTENCOURT, Edgard de Moura. Concubinato. São Paulo: Universitária de Direito, 1975, p. 23.
[9] CHAVES, Antonio. Do concubinato à família de fato. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 623, p. 13-17, 1987.
[10] AZEVEDO, Álvaro Villaça. Do concubinato ao casamento de fato. Belém: CEJUP, 1986, p. 67.
[11] Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, nº 132, 1989, p. 419.
[12] Revista Trimestral de Jurisprudência.  Brasília, v. 79, 1977, p.229.

[13] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável. 6. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 57.
[14] Op. cit., p. 27.
[15] Do concubinato ao casamento de fato, p. 66
[16] Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, nº 224, p. 119-128, 2003. p. 119.
[17] DIREITO, Carlos Alberto Menezes. Da união estável como entidade familiar. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 667, p. 17-23, 1991, p. 22.
[18] RIZZARDO, Arnaldo. Direito de família. Rio de Janeiro: Aide, 1994, v. 1, p. 349.

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